sábado, 27 de junho de 2009

Irã A revolução ao vivo



Carlos Sardiña Galache
http://carlos-enestemundo.blogspot.com/

Tradução Italo Rocha
Passaram-se três dias e estamos longe, muito longe, de saber o que realmente aconteceu na jornada eleitoral, o que não impede que milhões de pessoas no Ocidente e grande parte dos meios de comunicação internacionais tenham tomado claramente partido por um dos grupos e tenham decidido que, efetivamente, houve uma fraude eleitoral, ainda que só existam indícios que, por mais convincentes que pareçam, não são provas concludentes.
Numerosos “ciberativistas” estão animando da comodidade de suas casas a chamada “revolução verde”, enquanto são os iranianos que enfrentam a repressão e a violência dos basijs. Seria interessante analisar esse estranho fenômeno moderno ligado às “revoluções de cores”, que consiste em “solidarizar-se” com elas a partir dos países desenvolvidos da Europa e Estados Unidos quando, curiosamente, aqui ninguém parece estar disposto a levantar-se da sua poltrona por motivos políticos (e não é que faltem razões4 para isso muito mais próximas5). Isso não impede que muitos se apressem a animar da barreira umas revoluções distantes que nem sequer entendem, o que na verdade só serve para difundir rumores e fazer um ruído que não faz mais que aumentar a confusão.6 Além do mais, esses “ciber-revolucionários” de salão são enormemente seletivos: enquanto milhares de internautas ocidentais apóiam a “revolução verde”, quantos se mobilizaram pelos indígenas do Peru assassinados recentemente pelas forças de Alan García7, para levantar só um exemplo?
Não acredito ter mais conhecimentos sobre o Irã que muitos desses “ciber-revolucionários”, mas considero que não é o momento de tomar partido, e sim de observar os acontecimentos com certa distância e tratar de fazer algo muito mais difícil, compreender o que está ocorrendo ali.
A primeira acusação de fraude foi lançada pelo porta-voz de Musavi8, o cineasta radicado em Paris Mohsen Makhbalbaf, que disse que poucas horas depois das eleições o Ministério do Interior havia chamado a sede de campanha de Musavi para informar que tinha ganhado as eleições e que devia preparar a declaração de vitória. No entanto, à medida que avançava a recontagem, Ahmadineyad ia remontando posições9 até dar-se a curiosa situação de que ambos os candidatos se proclamaram vencedores.10 Os resultados finais foram divulgados no da seguinte11: com uma participação recorde de 85% de eleitores, Mahmud Ahmadineyad tinha ganhado as eleições com 64 % dos votos contra 32 % obtido por Mir Hossein Musavi. O aiatolá Khamenei deu por válidos os resultados: a vitória de Ahmadineyad era oficial.12

Desde o momento em que Makhbalbaf lançou as acusações de fraude, cresceriam como uma bola de neve e em muito pouco tempo passou a considerar-se um fato comprovado que Ahmadineyad, o candidato favorito de Khamenei, tinha roubado as eleições, provavelmente com a ajuda do aiatolá. Um dia depois das eleições, Juan Cole, um renomado especialista em Oriente Médio e Irã, publicou um post em seu blog no qual oferecia as principais “provas” de que as eleições tinham sido roubadas e apontava com o dedo diretamente ao líder supremo Khamenei.13
Uns indícios são mais convincentes que outros e alguns deles já foram rebatidos por outros analistas. A primeira “prova” de fraude que Cole menciona é que Ahmadineyad ganhou com 57 % dos votos na cidade de Musavi, Tabriz, de maioria azeri como o próprio Musavi. No entanto, segundo uma pesquisa14 realizada um mês antes das eleições pelas organizações norte-americanas Terror Free Tomorrow15 e New American Foundation16, Ahmadineyad tinha o dobro de apoios de azeris (31 %) de Musavi (16 %). Além disso, como assinala um artigo publicado no Político,17 dedicado a refutar as acusações de fraude, Ahmadineyad passou a falar azeri com fluência após ter sido governador durante seus oito anos de duas províncias de maioria azeri. No sábado Robert Fisk nos contava de Teerã18 que “um velho amigo seu” que “não havia mentido nunca para ele” lhe dizia que os resultados eram corretos e que não era surpreendente o triunfo de Ahmadineyad em Tabriz, onde criou cursos e títulos universitários em língua azeri. Também não se deve esquecer que o mesmo aiatolá Khamenei (o “padrinho” do atual presidente) é azeri.
Cole também afirma que é pouco provável que Ahmadineyad tenha ganhado em Teerã. No entanto, ele ganhou nas eleições de 2005 na capital e foi prefeito da cidade entre 2003 e 2005. Quando apontei este fato nos comentários de seu blog, Cole acrescentou uma frase no post que diz: “Acredita-se amplamente que Ahmadineyad só conseguiu a vitória em Teerã em 2005 porque os setores reformistas estavam desmotivados e ficaram em casa ao invés de ir votar”.
Independentemente do valor explicativo que se queira conceder a esta frase, Juan Cole parece esquecer os multitudinários meetings de Ahmadineyad em Teerã durante a campanha eleitoral. De fato, poucos dias antes das eleições, o presidente se viu obrigado a não comparecer em um deles porque haviam se congregado tantos partidários seus que os guarda-costas lhe avisaram que não podiam garantir sua segurança. 19
Outra suposição na qual se baseiam os que sustentam a teoria da fraude é a elevada participação eleitoral. Os autores do artigo já mencionado20, publicado em Político, afirmam que esse argumento se baseia unicamente em conjecturas. De qualquer forma, seria do mesmo modo razoável especular que a alta participação beneficia Ahmadineyad, que talvez tenha mais seguidores entre as classes humildes, mais numerosas que as classes médias e altas que apoiariam Musavi.
Frente às análises que apresentam o enfrentamento entre Musavi e Ahmadineyad em termos “culturais” como uma oposição entre “reformistas” e “conservadores”21, outros consideram que a autêntica divisão é uma divisão de classes22. Durante a campanha, Musavi se mostrou partidário de políticas econômicas mais neoliberais23 que as de seu oponente.
Em todo caso, é muito provável que uma informação bastante deturpada da campanha eleitoral por parte dos meios de comunicação internacionais explique a surpresa que o triunfo de Ahmadineyad causou fora do Irã, e a razão para que haja tanta gente predisposta a acreditar em acusações de fraude que, por mais razoáveis que pareçam, ainda não foram comprovadas fidedignamente por ninguém. Como assinalava no sábado o iraniano Abbas Barzegar em The Guardian24, a campanha de Musavi recebeu uma atenção muito maior que a de Ahmadineyad nos meios de comunicação não iranianos e se superdimensionou enormemente a sua popularidade. O mesmo está ocorrendo agora: as manifestações em apoio a Musavi estão recebendo uma atenção midiática muito maior que as de apoio a Ahmadineyad.
Tenha havido fraude eleitoral ou não, o que está mais que evidente é que Ahmadineyad tinha muitíssimas possibilidades de ganhar, e provavelmente mais que Musavi. Ken Ballen e Peter Doherty, os principais responsáveis da pesquisa antes mencionada (ver, em pdf25), publicaram na segunda-feira um artigo no Washington Post26, no qual argumentavam que é perfeitamente possível que o resultado eleitoral reflita a vontade popular iraniana. Segundo a pesquisa, realizada um mês antes das eleições, o número de iranianos que tinha a intenção de votar em Ahmadineyad (34 % dos entrevistados) era o dobro dos que tinham previsto votar em Musavi (14 %). 27 % dos entrevistados não sabiam ainda em quem iam votar; se se extrapola esse número às porcentagens de cada candidato, o resultado é muito similar aos votos emitidos finalmente nas eleições.
O artigo contém outros apontamentos enormemente interessantes. A grande maioria dos entrevistados se manifestou a favor de um sistema mais democrático e de normalizar as relações e o comércio com os Estados Unidos. Os iranianos, segundo dizem Ballen e Doherty, consideram que essas aspirações são coerentes com seu apoio a Ahmadineyad, ainda que “não desejam que continue suas políticas conservadoras. Pelo contrário, aparentemente os iranianos consideram Ahmadineyad seu negociador mais duro, a pessoa melhor posicionada para chegar a um acordo mais favorável para eles; como um Nixon persa viajando à China”.
O fato de que muitos iranianos considerem compatível apoiar Ahmadineyad e as reformas democráticas, sem dúvida chocará muitos ocidentais que acreditaram de pés juntos, sem nenhum matiz, na repartição de papéis que outorga a Musavi o personagem “bom reformista” e a Ahmadineyad o de “mau ultraconservador”. É certo que o tom de Musavi em assuntos internacionais soa mais conciliador que o de Ahmadineyad e que prometeu relaxar o férreo controle estatal sobre alguns dos aspectos da vida dos iranianos ou dar um maior protagonismo público às mulheres,27 mas não se deve esquecer que Musavi é, antes de tudo, um homem do regime, em cuja consolidação teve um papel protagonista como primeiro-ministro entre os anos 1981 e 1989, os anos mais duros do mandato do aiatolá Khomeini. Tem algo de excêntrico que meio Ocidente esteja aclamando como um condutor da democracia o homem que em 1981 iniciou uma perseguição implacável28 contra as facções da esquerda que haviam contribuído pelo triunfo da revolução islâmica.29
Talvez o que estamos presenciando no Irã seja na verdade o pulso de poder entre duas fortes personalidades da vida pública iraniana: o encabeçado pelo impiedoso ex-presidente (1989-1997) Akbar Hashemi Rafsanjani no grupo de Musavi e o do aiatolá Khamenei no de Ahmadineyad. “Rafsanjani não tem mantido em segredo sua opinião de que as políticas exterior e econômica aplicadas nos últimos quatro anos seguindo as diretrizes de Khamenei prejudicaram gravemente a República Islâmica. […] Em uma violenta carta acusava Khamenei de não honrar a dignidade nacional. Em um desafio sem precedentes à autoridade de Khamenei, insinuava que o Líder Supremo, que normalmente não é objeto de críticas, era negligente, parcial e possivelmente estava envolvido em um complô para roubar as eleições”, escrevia ontem Simon Tisdall em The Guardian.30
Seja como for, tudo parece indicar que os protestos tomaram um impulso próprio cujo desenlace é totalmente imprevisível, entre outras coisas porque, mais além da suposta fraude eleitoral, é impossível saber o que realmente querem os manifestantes. Mais liberdades? Mudar o sistema político? Parece, em todo caso, que os manifestantes pró-Musavi não são um grupo, quanto menos algo homogêneo31, e que estão expressando inumeráveis reivindicações, algumas delas inclusive contraditórias entre si.
Em 1978, o filósofo francês Michel Foucault viajou ao Irã em duas ocasiões desencantado pelo fracasso do projeto ilustrado na Europa.32 O autor de Vigiar e castigar publicou na revista francesa Le Nouvel Observateur um famoso artigo intitulado “Com o que sonham os iranianos?”,33 no qual expunha sua fascinação pela revolução iraniana, na qual viu o “movimento que permitiria introduzir na vida política uma dimensão espiritual”, e fazia diagnósticos tão atinados como este: “Um fato deve ficar claro: por ‘Governo islâmico’ ninguém no Irã entende um regime político no qual o clero jogue um papel de governo ou controle”. Suspeita-se que na sua tentativa de interpretar os sonhos do povo iraniano, Foucault tenha projetado os seus próprios. Quantos de nós no Ocidente não estaremos vendo agora na “revolução verde” nada mais que aquilo que desejamos ver?
Notas:1 http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/the-day-of-destiny-1706010.html2 http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/seven-killed-as-protesters-launched-attack-1706207.html3 http://www.guardian.co.uk/world/2009/jun/16/iran-elections-protests-recount4 http://www.publico.es/internacional/232282/ultraderecha/italia/rondas/negras/guardia/nacional/italiana5 http://www.juanlusanchez.com/archivos/2008/12/30/detras-de-la-valla-de-melilla-reportaje/6 http://trueslant.com/joshuakucera/2009/06/15/what-if-we-are-all-wrong-about-iran/7 http://www.pmasdh.com/2009/06/matanza-por-la-tierra-indigena-de-peru/8 http://andrewsullivan.theatlantic.com/the_daily_dish/2009/06/a-timeline-of-the-coup.html9 http://www.presstv.com/detail.aspx?id=9795310 http://www.huffingtonpost.com/2009/06/12/iran-election-results-ahm_n_214975.html11 http://www.presstv.com/detail.aspx?id=9799012 http://www.presstv.com/detail.aspx?id=9811513 http://www.juancole.com/2009/06/stealing-iranian-election.html14 http://www.huffingtonpost.com/robert-naiman/based-on-terror-free-tomo_b_215423.html15 http://www.terrorfreetomorrow.org/16 http://www.newamerica.net/17 http://www.politico.com/news/stories/0609/23745.html18 http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fisk-iran-erupts-as-voters-back-the-democrator-1704810.html19 http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/middle_east/article6458557.ece20 http://www.politico.com/news/stories/0609/23745.html21 http://www.juancole.com/2009/06/class-v-culture-wars-in-iranian.html22 http://djavad.wordpress.com/2009/06/09/the-poor-vs-the-middle-class/23 http://www.presstv.ir/election2009/detail.aspx?id=9582124 http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2009/jun/13/iranian-election25 http://www.terrorfreetomorrow.org/upimagestft/TFT%20Iran%20Survey%20Report%200609.pdf26 http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2009/06/14/AR2009061401757.html?hpid=opinionsbox127 http://www.time.com/time/world/article/0,8599,1904343-1,00.html28 http://guerraypaz.com/2009/06/16/musavi-y-las-hemerotecas/29 http://hablandodormido.blogspot.com/2007/08/baray-e-azadi-por-la-libertad.html30 http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2009/jun/15/rafsanjani-iran-elections31 http://pulsemedia.org/2009/06/16/a-Musavi-supporter-speaks/32 http://www.boston.com/news/globe/ideas/articles/2005/06/12/the_philosopher_and_the_ayatollah/33 http://www.triunfodigital.com/mostradorn.php?a%F1o=XXXII&num=822&imagen=51&fecha=1978-10-28 http://carlos-enestemundo.blogspot.com/

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