sábado, 20 de julho de 2013

A revolução “sem liderança”: falácia global e intervenção militar no Egito

 Cihan TugalCounterpunch

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Essa ideia, construída com vistas aos camponeses franceses, nos alertam contra a beatificação das massas não organizadas, um romanticização atualmente muito em moda. Muitas teses anti-representação, vindas dos extremos mais ideologicamente opostos (anarquistas, liberais, autonomistas, pós-modernos etc.) resumem-se todas a um único pressuposto: quando não há metadiscurso, nem liderança, a pluralidade vencerá. Pode até ser verdade no curso prazo. De fato, no caso do Egito, o anonimato dos porta-vozes do Movimento Tamarod até ajudou, no início: os porta-vozes (que não são líderes, como tanto se disse) não podiam ser demonizados como populistas partidarizados. Além disso, porque uniam o povo só em torno de uma identidade negativa (todos anti-Fraternidade), e traziam táticas inovadoras, o Movimento Tamarod mobilizou pessoas de todos os grupos e tipos. Mesmo assim, as massas mobilizadas caíram como presas fáceis nos braços da única opção clara: o antigo regime!
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Cihan Tugal
Mais de 10 milhões de pessoas mobilizaram-se no Egito contra um autocrata desajeitado. E essa mobilização, afinal de contas, levou à tomada, por militares e juízes, do poder, com o apoio de políticos de centro e de clérigos. Chamem como quiserem: golpe de estado, golpe elegante ou poder popular. Nenhum rótulo muda a natureza da intervenção e o dia seguinte: governo militar apoiado pelo povo, dos praticamente os mesmos elementos que estavam no poder no tempo de Mubarak e que haviam construído uma coalizão (instável e incompleta) com a Fraternidade Muçulmana.

As revoltas em anos recentes na Tunísia e no Egito acenderam a imaginação de muitos ativistas em todo o mundo, que viram ali uma “revolução sem liderança”. Contudo, o estranho amálgama de revolução, restauração, golpe, democratização e autoritarismo que persistiu ao longo do processo egípcio sugere lições diferentes, ainda por extrair daquela situação.

De campanha popular à reafirmação do poder das elites

Tamarod, uma campanha popular sem precedentes, coletou milhões de assinaturas e exigiu a derrubada do presidente Mursi. Multidões imensas reuniram-se em todo o Egito no dia 30 de junho, para fazer acontecer o que a campanha exigia. Segundo as estimativas, cerca de 15 milhões de pessoas tomaram as ruas, o que fez daquela a maior rebelião da história do Egito.

Militante do Movimento Tamarod (Rebelde)
Por ironia, a maior parte das pessoas parecia apoiar os militares. Houve até grupos que clamavam abertamente por uma intervenção militar. Entre os manifestantes havia não só civis que queriam a volta de Mubarak, mas também membros das gangues armadas que constituíam a “segurança” do governo Mubarak, que tornaram a vestir os antigos uniformes para ir à praça. De fato, durante o mês de junho, foi-se tornando cada dia mais claro que os militares planejavam usar a rebelião como uma oportunidade para intervir (e alguns políticos, que antes haviam feito duras declarações contra governos militares, puseram-se então a considerar bem-vindos os mesmos militares).

Movimento Tamarod - anti-Mursi
Havia também outras forças dedicadas a capitalizar os protestos e reforçar a própria dominação. Por exemplo, muitos intelectuais do Golfo festejaram as dificuldades da Fraternidade. Queriam um autêntico Erdoğan na presidência do Egito, não um simulacro “de Taiwan”. Escolheram ignorar que suas críticas contra Mursi (concentração de poderes, centralização, autoritarismo etc.) aplicam-se igualmente ao seu líder muçulmano favorito. E as cabeças influentes na região, assim, sugeriam que a única via para sair da crise egípcia seria outro caminho conhecido, não qualquer via revolucionária.

Mohamed Mursi
Houve convocações para uma greve geral durante os protestos de 30 de Junho, além de gritos e gritos que pediam a intervenção militar. De fato, a situação nacional que preparou o cenário do qual emergiu o Movimento Tamarod tem uma dimensão de classe, que não foi claramente articulada como parte de sua plataforma. Além disso, alguns grupos em Tahrir (“6 de Abril”, “Partido Egito Forte” “Socialistas Revolucionários” [orig. April 6, Strong Egypt Party, Revolutionary Socialists) protestavam abertamente contra os militares, não só contra a Fraternidade.

Nada disso contudo, culminou em algum mapa do caminho que delineasse o modo de escapar da coalizão Fraternidade-militares (o que deixou os militares e seus novos aliados como únicos atores capazes de ditar o afamado mapa).

O resultado imediato do levante foi a renúncia de seis ministros. Se algum desejo político revolucionário se tivesse cristalizado no Egito durante os últimos dois anos e meio, teria podido capitalizar aquela abertura e declarar vitória antecipada; quer dizer, teria podido agir antes que os Kornilovs convertessem o levante em vitória deles mesmos.

Quando os militares intervieram, alguns poucos discursos e slogans antigolpe ainda se fizeram ouvir, mas foram afogados pela atmosfera francamente pró-militares em Tahrir. O otimismo infundado, de que forças antimilitaristas permaneceriam na praça até a saída dos militares nada alterou na dinâmica principal. Ninguém mobilizou Tahrir para lutar contra seus principais torturadores. Os milhões que voltaram só pensavam em impedir que os Irmãos tomassem a praça.

Praça Tahrir na noite de 1/7/2013
Em resumo, julho de 2013 testemunhou não só a remoção de um presidente não popular, mas a constituição de regime plenamente ditatorial: centenas de membros da Fraternidade Muçulmana e de islamistas sem qualquer ligação com a Fraternidade foram duramente atacados. Muitos canais de televisão foram fechados. E, o mais importante, os militares indicaram uma figura do Judiciário do antigo regime para substituir o presidente. Os massacres subsequentes foram ingredientes necessários e conhecidos sem os quais nenhum golpe militar se impõe.

Os vícios de interpretação

Muitas das respostas iniciais à intervenção militar passaram sem ver por um ponto crucial: sob a coalizão Fraternidade-militares, o Egito estava andando rapidamente de um regime autoritário com apoio popular para um regime totalitário com apoio popular. Os ativistas da Praça Tahrir tiveram o desejo suficientemente radical de tornar mais lenta essa transformação, mas não encontraram as ferramentas para detê-la completamente, sem a perniciosa “ajuda” dos militares. Liberais focados nos procedimentos, que criticaram a intervenção militar, ignoraram completamente que, sob certas condições, um presidente eleito pode contribuir para construir regime totalitário, o qual fará, de quantas eleições haja, simples plebiscitos. A rua precisou agir para defender a revolução egípcia e talvez, até, para depor o presidente. Os liberais, com o medo visceral que as multidões lhes inspiram, decidiram impedir, não apenas esses movimentos arriscados, mas todas e quaisquer formas de democracia participativa.

Fraternidade Muçulmana
Igualmente perigosos foram os relatos que listaram os abusos do regime da Fraternidade-militares, mas ninguém chegou a discutir as calamidades que um regime contra-Fraternidade poderia produzir. Os que chamaram o golpe militar de uma “segunda revolução” foram rápidos ao denunciar os movimentos autocráticos do governo da Fraternidade. Mas não explicaram em que sentido o regime que substituísse os Irmãos poderia vir a tornar-se algum tipo de democracia. (Um amplo círculo de intelectuais pro-Tamarod concentrou-se nos movimentos ilegítimos do presidente deposto, sem ir além e sem enfrentar a questão de, se e como aqueles movimentos legitimariam os movimentos de um governo militar-judiciário depois de deposto o presidente eleito).

A afirmação, que se viu frequentemente em inglês e em árabe, de que “todos os fatores que fizeram de 25 de Janeiro uma revolução permitem chamar o 30 de Junho de segunda revolução” ignorou um fato claro (dentre muitos outros): 2013 não é 2011. Em outras palavras, passaram-se dois anos, que levaram a possibilidades sociais e políticas diferentes. Durante esses dois anos, a prioridade poderia ter sido organizar o poder popular, criar instituições alternativas e liderança revolucionária, para impedir (ou, no mínimo, para tornar mais lento) o avanço do autoritarismo das autoridades eleitas; sem só se cogitar de derrubá-las e, assim, abrir caminho para os velhos inimigos da revolução.

Entrada da Praça Tahrir na noite de 3/7/2013

Alguns comentadores ainda insistem que, nem os militares, nem a Frente de Salvação Nacional (a coalizão de políticos de centro, contra a Fraternidade Muçulmana) representa as massas em Tahrir, cujas demandas reais são democracia e eleições antecipadas. Esse argumento, que se faz em nome dos milhões aparentemente pró-militares, nada altera numa das regras pétreas da política: os que não se possam representar eles mesmos, sempre serão representados por terceiros.

Os frutos da “revolução” sem ideias revolucionárias

Essa ideia, construída com vistas aos camponeses franceses, nos alertam contra a beatificação das massas não organizadas, um romanticização atualmente muito em moda. Muitas teses anti-representação, vindas dos extremos mais ideologicamente opostos (anarquistas, liberais, autonomistas, pós-modernos etc.) resumem-se todas a um único pressuposto: quando não há metadiscurso, nem liderança, a pluralidade vencerá. Pode até ser verdade no curso prazo. De fato, no caso do Egito, o anonimato dos porta-vozes do Movimento Tamarod até ajudou, no início: os porta-vozes (que não são líderes, como tanto se disse) não podiam ser demonizados como populistas partidarizados. Além disso, porque uniam o povo só em torno de uma identidade negativa (todos anti-Fraternidade), e traziam táticas inovadoras, o Movimento Tamarod mobilizou pessoas de todos os grupos e tipos. Mesmo assim, as massas mobilizadas caíram como presas fáceis nos braços da única opção clara: o antigo regime!

Movimento Tamarod colhe assinaturas para destituir Mohamed Mursi
Ainda que os revolucionários não produzam ideias, demandas e líderes, nem por isso estará garantida que a revolução se fará sem ideologia, demandas e líderes. De fato, a ideologia espontaneísta do Movimento Tamarod, como adiante se verificou, era um nacionalismo militarista; sua demanda, um golpe pós-moderno; seus líderes, os feloul (o “entulho” que sobrou do velho regime). Esse é o perigo que ameaça qualquer revolta que se pretenda sem liderança: deixar-se apropriar pelas principais alternativas institucionais das próprias instituições contra as quais combatem.

É hora de globalizar as lições da onda global de 2011-2013. Comecemos por EUA e Egito. O que se aprende desse caso é que quando movimentos não têm (ou dizem não ter) pensamento, agenda, demandas e líderes, só podem andar numa das seguintes direções: podem dissipar-se (como aconteceu com Occupy), ou viram instrumentos em agendas alheias.

Vivemos tempos interessantes... Diferente das décadas depressivas que se arrastaram de 1980 a 2010, “o povo quer que o sistema caia” – como diz oslogan árabe. E é bem provável que o sistema caia, não só no Egito, mas em outros pontos do mundo (se se considera o quanto as atuais elites e líderes são reacionários e avessos a reformas, onde estiverem, seja na Casa Branca ou nas colônias: não querem, simplesmente, ou são incapazes de imaginar, sequer, cenários do tipo New Deal, os quais, no mínimo, talvez absorvessem as revoltas).

Mas não basta que o sistema “caia”. O que o substituirá? Todos se empenham em fugir dessa pergunta (as metanarrativas, ao que consta, estariam mortas; quer dizer... todas as metanarrativas, exceto o liberalismo!). É hora de acordar e perceber que se não desenvolveram alternativas que se mantenham em pé (e organizações e instituições que façam-acontecer aquelas alternativas), talvez, até, o sistema caia. Mas isso não implicará que teremos, para viver, um mundo melhor.

Revoluções cheias de líderes

Agora, acontecerá o quê? Os militares egípcios são perfeitamente capazes de perpetrar política neoliberal, pró-norte-americana e seu comprovadamente renitente autoritarismo. 

Militares egípcios dominam o país
Muitos setores da esquerda absolutamente nada esperam dos militares – quanto a isso não será preciso convencê-los. Mas, assim como a Fraternidade Muçulmana tão rapidamente afastou dela, em um ano de governo, tantos milhões de pessoas, assim também os “novos” militares (que se “reposicionarão”, comogriffe, depois de se terem apropriado de um levante revolucionário) logo mostrarão sua verdadeira face aos que apoiaram o golpe, movido por ingênuas esperanças democráticas. O “novo” regime autoritário com apoio democrático parece já estar começando a pavimentar a estrada pra um terceiro levante revolucionário.

A esquerda (que deve incluir também não socialistas, não anarquistas, não comunistas e as/os feministas e todos os liberais de esquerda e os islamistas de esquerda) tem de usar o tempo para organizar a inevitável insatisfação com o governo dos militares. Tem de construir alternativas sólidas à democracia dos militares e à democracia conservadora-totalitária. Baseada em suas experiências dos três últimos anos, deve construir lideranças, instituições e organismos de poder popular que possam fazer-ser seu projeto alternativo.

Em resumo: dessa segunda vez, a esquerda terá de estar preparada.

*****

O fim da revolução sem lideranças não implica o fim do processo revolucionário no Egito. Mas põe a nu a falácia segundo a qual “o povo”, sozinho, sem agenda, sem plataforma, sem ideias e sem lideranças poderia algum dia ser poder popular.

No Egito, a revolução sem liderança acabou por ser mera substituta do status quo e de revoluções que levaram ao culto do líder. Hoje, talvez, precisemos de revoluções enriquecidas com muitas, não com apenas umas poucas, lideranças.

A revolução egípcia traiu-se ela mesma

 [*] Ramzy BaroudAsia Times Online  

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mohamed ElBaradei
“A revolução morreu. Longa vida à revolução” – escreveu Eric Walberg, autor e especialista em política do Oriente Médio, logo depois que os militares egípcios derrubaram o presidente democraticamente eleito no Egito, Mohammed Mursi, dia 3 de julho. Mas, com mais precisão, deve-se dizer que a revolução foi assassinada, morte lenta e terrível, por vários, muitos assassinos.

Mohamed ElBaradei, elitista liberal, com triste currículo a serviço das potências ocidentais ao longo de toda uma glamorosa carreira como diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, é exemplo que se destaca, da crise política e moral em que o Egito mergulhou desde a derrubada do ditador Use Mubarak.

ElBaradei teve papel negativo importante nessa triste saga, desde seu espetaculoso retorno ao Egito durante a revolução de janeiro de 2011 – apresentado agora como libertador, sensível, educado no Ocidente – e único substituto “sério” para o primeiro presidente que o Egito jamais elegeu, agora derrubado por militares. Esse duplifalar é manifestação não só de oportunismo político – e ElBaradei sempre foi oportunista no comando de seu Partido Dostour – mas de toda a filosofia política da Frente de Salvação Nacional, grupo guarda-chuva criado para abrigar toda a oposição e que ElBaradei coordena.

Homem de falar suave, que só muito fracamente e muito raramente se manifestou contra as pressões injustas impostas ao Iraque ao tempo em que presidia a AIEA, ElBaradei foi miraculosamente convertido em político duro, com muitas exigências e altíssimas expectativas.

O seu partido, assim como o restante da oposição egípcia, resultaram sempre extraordinariamente mal posicionados em todas as eleições democráticas e no referendo que o Egito conheceu desde o fim do governo Mubarak. A democracia provou que ElBaradei e seu partido são irrelevantes. Mas, depois de cada fracasso eleitoral, ElBaradei e a oposição apareciam falando cada vez mais alto, por ação exclusiva de um aparelho ‘midiático’ operante 24 horas por dia, sete dias por semana, em operação coletiva, coordenada, para alterar o quadro que as eleições haviam definido, sempre a favor de ElBaradei e da oposição, fosse qual fosse o resultado das urnas egípcias.

Abdel-Fattah el-Sisi
Pouco depois de o general Abdel-Fattah el-Sisi ter anunciado um golpe militar, dia 4 de julho, uma evidente e bem organizada conspiração que envolveu o exército; parte significativa da imprensa e demais veículos de mídia; a oposição e juízes dos tribunais da era Mubarak silenciou a Fraternidade Muçulmana – que tinha mídia sua, organizada e operante. O nível de organização que se viu nas ações dos conspiradores golpistas não deixa dúvidas de que os militares mentiam quando, dois dias antes, haviam dado 48 horas para que os partidos políticos conciliassem suas diferenças e resolvessem suas disputas.

Nunca houve espaço para qualquer conciliação entre ElBaradei e os partidos que lhe fazem oposição – o que o exército sabia perfeitamente bem. Dia 30 de junho, um ano depois de Mursi ter assumido a presidência, depois de eleições transparentes, a oposição organizou-se, com o sinistro objetivo de derrubar, a qualquer custo, o presidente eleito.

Alguns convocaram o exército, que já se provou vicioso e nada confiável, para liderar a transição “democrática”. ElBaradei convidou até apoiadores de antigo regime, para unirem-se à sua cruzada para depor a Fraternidade. A ideia era simples: reunir o maior número de pessoas nas ruas, declarar uma segunda revolução e convocar os militares para salvarem o Egito de Mursi e de um suposto desrespeito à vontade do povo.

Os militares, com um show repulsivo de benevolência cenografada, acorreram ao chamado de uns poucos, em nome do povo e da democracia. Prenderam o presidente, fecharam as redes de televisão islamistas, mataram muitos e prenderam centenas de eleitores do partido governante. E vieram os fogos de artifício, com ElBaradei e seus homens comemorando uma suposta “salvação” do Egito.

Mohamed Elmasry
Mas não era nada disso

Os donos dos meios de comunicação de massa da era Mubarak e membros chaves da oposição liberal e secular haviam-se unido para criar uma das mais efetivas campanhas de propaganda de que se tem notícia na história política recente, para demonizar Mursi e a Fraternidade Muçulmana – escreveu Mohamad Elmasry, da Universidade Americana no Cairo.

Nenhuma das empresas da imprensa-empresa no Egito jamais deixou de ser fiel ao antigo regime. Todas as grandes empresas de mídia permaneceram tão sujas e corruptas quanto foram nos tempos de Mubarak. Sempre estiveram naquele posto para servir aos interesses dos grandes comerciantes e das elites políticas. Mas, na realidade mutável do novo quadro político – três eleições democráticas e dois referendos, todos os pleitos vencidos por eleitores dos partidos que apóiam os islamistas – já não era possível para jornais e jornalistas e televisões continuarem a operar usando a mesma linguagem de antes. E todos esses empresários e empresas e jornalistas pularam então para dentro do vagão da revolução, usando o mesmo quadro de referências que sempre usaram, como sempre tivessem estado na vanguarda da luta por liberdade, igualdade e democracia.

As forças reacionárias no Egito, não só a mídia, mas também os juízes pró-Mubarak, os militares – empresários - comerciantes, etc., conseguiram sobreviver ao levante político, mas não por serem especialmente hábeis ou inteligentes. Aconteceu, isso sim, que encontraram muito espaço para se reagruparem e manobrar, porque uma oposição desesperada –El Baradei e companhia –, só cuidavam de atacar Mursi, de atacar a Fraternidade Muçulmana e de interromper o processo democrático que os levou legitimamente ao poder.

No desespero por mais e mais poder, todos esqueceram de considerar a revolução, seus objetivos iniciais. Assim desonraram a democracia, mas, mais grave que isso, puseram em risco o próprio futuro do Egito.

O que aconteceu no Egito, a começar pela “revolução” orquestrada de 30 de junho, do ultimatum que os militares lançaram, ao golpe militar, à vergonhosa reinvenção da velha ordem – acompanhada de prisões novamente cheias e com os mesmos tanques atacando civis desarmados – não foi frustrante só para a maioria dos egípcios. Foi também terrível choque para muitos, em outros países. O Egito que por um momento serviu de inspiração ao mundo, voltou ao ponto em que estava quando tudo começou.

Praça Tahrir no início da Primavera Árabe em 2011
Desde o início da chamada Primavera Árabe, houve intenso debate em torno de numerosas questões. Uma delas foi o papel da religião numa democracia saudável. O Egito, claro, estava no coração daquele debate, e cada vez que os egípcios iam às urnas, os eleitores como que, de certo modo, repetiam a mensagem de que desejavam ver alguma espécie de casamento entre o Islã e a democracia.

Jamais foi questão simples ou fácil, e até agora não há respostas convincentes. Mas, como em qualquer democracia saudável, a decisão final tem de caber ao povo. Absolutamente nada muda, se o voto e o desejo de um camponês pobre numa vila remota no interior do Egito não coincidem exatamente com a sensibilidade elitista de El Baradei.

É triste, mas não surpreende, que muitos dos idealistas que tomaram a Praça Tahrir em janeiro de 2011 e falavam de direitos iguais para todos, não sejam capazes de conviver com essa consequência da igualdade de direitos. Alguns reclamaram que décadas de marginalização sob Mubarak não habilitaram os egípcios pobres, analfabetos, sem qualquer educação formal a tomar decisões no campo da representação política ou de uma Constituição democrática.

E, numa triste virada histórica, aquelas mesmas forças estão hoje abertamente empenhadas num golpe para derrubar presidente democraticamente eleito e sem partido, ao mesmo tempo em que celebram a volta da opressão, como se fosse glorioso dia de liberdade. El Baradei pode assim voltar ao centro do palco, dando “aulas” aos egípcios pobres sobre o que é a verdadeira democracia – e por que, em vários sentidos, nenhuma maioria faz qualquer diferença.


[*] Ramzy Baroud é colunista internacional e editor do jornal Palestine Chronicle. seu último livro foi My Father was A Freedom Fighter: Gaza's Untold Story (Pluto Press) ainda sem tradução em português.

Egito, Brasil, Turquia: Sem política, o protesto está à mercê das elites

2/7/2013, Seumas MilneThe Guardian, UK

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Seumas Milne
Do Egito ao Brasil, a ação nas ruas impulsiona a mudança, mas a organização é essencial, ou a ação será sequestrada ou desarmada.

Dois anos depois que os levantes árabes alimentaram uma onda de protestos e ocupações em todo o mundo, as manifestações de massa voltaram ao cenário original, no Egito. Assim como milhões de pessoas desafiaram repressão brutal em 2011 para derrubar o ditador Hosni Mubarak apoiado pelo ocidente, milhões saem agora às ruas de cidades egípcias, para exigir a saída do primeiro presidente jamais eleito no Egito, Mohamed Mursi.

Como em 2011, a oposição é uma aliança de esquerdas e direitas dominada pela classe média. Mas dessa vez os islamistas estão do outro lado, e partidários do regime de Mubarak estão envolvidos. A polícia, que atacou e matou manifestantes há dois anos, esse ano manteve-se longe, enquanto manifestantes incendiavam escritórios da Irmandade Muçulmana de Mursi. E o exército, que apoiou a ditadura até o último momento antes de constituir uma junta, em 2011, agora apoia com todas as suas forças a oposição.

Egito celebra a queda de Mohamed Mursi e da Irmandade Muçulmana
Se o ultimato do exército ao presidente converter-se em golpe total e acabado, ou se vier uma mudança administrada do governo, nos dois casos o exército – fartamente financiado e treinado pelo governo dos EUA e com pleno controle sobre vários interesses comerciais – voltou a assumir as rédeas. E muitos autoproclamados revolucionários, que antes denunciaram Mursi por render-se aos militares, agora festejam os mesmos militares. Se se considera o que ensina a experiência passada, logo estarão lamentando.

É claro que não faltam aos manifestantes motivos de queixa contra o governo de um ano, de Mursi: desde o estado calamitoso da economia, a islamização constitucional e a tomada do poder institucional, ao fato de que não rompeu com as políticas neoliberais de Mubarak e tudo que fez para satisfazer o poder de EUA e Israel.

Mas fato é que, por muito incompetente que o governo Mursi tenha sido, muitos dos controles cruciais do poder – do aparato judicial e a polícia, até as forças armadas e a imprensa-empresa – continuam como sempre estiveram em mãos das elites do antigo regime. Essas elites veem declaradamente os Irmãos Muçulmanos como intrusos, intrometidos, cujos dirigentes devem voltar à cadeia o mais rapidamente possível.

Essa gente é que, agora, está aliada com forças da oposição que realmente querem que a revolução egípcia alcance, pelo menos, uma conclusão democrática. Se Mursi e a Irmandade Muçulmana estão sendo derrubados do poder, é difícil imaginar que gente desse tipo rompa com a ortodoxia neoliberal ou afirme a independência nacional, como querem a maioria dos egípcios. O mais provável é que os islamistas, também com apoio massivo, resistam contra um movimento que lhes nega o mandato que obtiveram nas urnas, o que lançará o Egito num conflito mais grave.

Manifetantes na Praça Taksim, ao fundo o Parque Gezi, em Istambul - Turquia
A mais recente irrupção no Egito aconteceu imediatamente depois de protestos massivos na Turquia e no Brasil (e de agitação menor na Bulgária e na Indonésia). Nenhuma dessas refletiu a luta generalizada pelo poder no Egito, mesmo que alguns manifestantes na Turquia tenham exigido a saída do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan. Mas ecos significativos destacam tanto o poder como a fragilidade de manifestações relâmpago, como essa, de cólera popular.

No caso da Turquia, o que começou como um protesto contra a remodelação do Parque Gezi de Istambul converteu-se rapidamente em manifestações massivas contra o governo islamista cada vez mais feroz. Uniu nacionalistas turcos e curdos, liberais e esquerdistas, socialistas e defensores do livre mercado. A abrangência foi uma força, mas a natureza díspar das demandas dos manifestantes provavelmente enfraquecerá seu impacto político.

No Brasil, as manifestações massivas contra um aumento dos preços do transporte público converteram-se em protestos mais amplos contra serviços públicos de má qualidade e o custo exorbitante da Copa do Mundo de 2014. Como na Turquia e no Egito, jovens de classe média e despolitizados apareceram à frente e rechaçou-se a participação de partidos políticos, ao mesmo tempo em que grupos e empresas jornalísticas e de televisão tratavam de desviar o sentido da manifestação, afastando qualquer reflexão sobre a desigualdade, e introduzindo demandas por menos impostos e contra a corrupção.

Protestos no Rio de Janeiro em junho/2013

Apesar das diferenças, os três movimentos têm impressionantes traços comuns. Combinam grupos políticos amplamente divergentes e demandas contraditórias, ao lado de gente despolitizada, e não têm qualquer base coerente de organização. Pode até ser vantagem, no caso de campanhas de um só tema, mas pode levar a uma superficialização, de pouca duração, no caso de objetivos mais ambiciosos – destino que parece ter sido o do movimento Occupy.

Todos eles, sem dúvida, foram fortemente influenciados e modelados pelasredes sociais e as redes espontâneas que favorecem e fomentam. Mas há muitos precedentes históricos, de protestos semelhantes de poder popular, e lições importantes de por que, frequentemente, são desbaratados ou levam a resultados muito diferentes dos esperados pelos protagonistas.

Barricadas de La Madelaine - Paris, 1848
Os precedentes mais óbvios são as revoluções europeias de 1848, que também foram dirigidas por reformadores de classe média e traziam a promessa de uma primavera democrática, mas praticamente entraram em colapso em um ano. Imediatamente depois do tumultuoso levante de Paris de 1968, veio uma vitória eleitoral da direita francesa. Os que marcharam pelo socialismo democrático em Berlin Ocidental em 1989 levaram à privatização e a desemprego em massa. As revoluções “coloridas” da década passada, patrocinadas pelo ocidente, usaram os manifestantes para uma encenação, com transferência do poder a oligarcas e elites privilegiadas. 

Os movimentos dos indignados  contra a austeridade na Espanha foram impotentes para impedir a volta da direita e o tombo numa austeridade ainda mais profunda.

Na era do neoliberalismo, quando a elite governante esvaziou a democracia e demonstra que, não importa em quem se vota, o resultado nunca muda, tendem a prosperar movimentos incipientes de protesto. Trazem potências cruciais: podem mudar o estado de ânimo, desfazer políticas e derrubar governos. Mas, sem uma organização enraizada na sociedade e que tenha objetivos políticos claros, podem perder-se e fracassar, ou são muito vulneráveis a sequestros e desvios, pela ação de forças mais arraigadas e mais poderosas.

O mesmo se pode dizer de revoluções, e é o que parece estar acontecendo no Egito. Muitos ativistas entendem que os partidos e movimentos políticos tradicionais seriam supérfluos na era da Internet. Mas esse é argumento para que se criem novas formas de organização política e social. Sem isso, as elites conservarão o controle e o poder, por mais espetaculares que sejam os protestos.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Mubarakismo sem Mubarak: “A luta pelo Egito”

Por : [*] Joseph Massad, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Mohamed Mursi discursa logo após ser eleito
Desde que Mohamed Mursi foi eleito presidente do Egito em eleições democráticas maculadas pela corrupção eleitoral e pelos subornos promovidos por seu adversário mubarakista Ahmad Shafiq, uma coalizão de liberais egípcios, nasseristas, a esquerda – inclusive socialistas e comunistas de vários tipos – e até salafistas e membros renegados da Fraternidade Muçulmana (FM) começaram, lentamente, mas firmemente, a estabelecer uma aliança com a burguesia reinante ao tempo de Mubarak e políticos daquele governo, para derrubar Mursi, temendo que ele e seu partido estivessem preparando uma tomada do poder “à moda dos nazistas”, para destruir a nascente democracia egípcia.

O cenário que temem é aquele que levou os nazistas em 1933 a estabelecerem um estado totalitário. Em julho de 1932, nas eleições para o Reichstag(parlamento) alemão, o partido nazista recebeu 37% dos votos, o que fez dele o maior partido no Parlamento. Dia 30/1/1933, o presidente da Alemanha, Paul von Hindenburg, indicou Hitler para o posto de Chanceler do Reich, posto no qual Hitler chefiava um gabinete no qual havia uma minoria de ministros nazistas. Um mês adiante, dia 27/2/1933, agentes provocadores incendiaram o prédio do Parlamento. Hitler acusou os comunistas de golpe para derrubar o presidente democraticamente eleito e requereu ao Presidente da República de Weimar que lhe desse poderes emergenciais para suspender as liberdades civis, para que pudesse caçar os comunistas e prendê-los, dissolver partidos políticos e conter a imprensa. O decreto que deu a Hitler todos esses poderes ficaria conhecido como “Decreto do Incêndio do Reichstag”. Dia 23/3/1933, o Parlamento alemão deu poderes ditatoriais a Hitler, fixando o estado e o regime nazista totalitário.

A aliança anti-Mursi, que começou a formar-se de fato em agosto de 2012, começou vacilante, mas em novembro de 2012 já era orgulhosa e muito assertiva, depois do infame Decreto Constitucional de Mursi, que centralizava o poder político nas mãos do presidente. Com a ajuda dos juízes de Mubarak, a burguesia mubarakista e o Conselho Supremo das Forças Armadas, que governaram o Egito por um ano e quatro meses depois da derrubada de Mubarak, já haviam dissolvido o Parlamento democraticamente eleito depois do levante, composto de uma maioria de islamistas, sob argumentos técnico-legalistas, antes da eleição de Mursi. Fizeram-no com o apoio de liberais e esquerdistas, que se apresentavam com verdadeiros líderes do levante de 25 de janeiro que derrubara Mubarak e que temiam que islamistas eleitos, que eles desprezavam, não seriam parte do levante, mas “aderidos” à sua “revolução”. Poucos dias antes das eleições, os militares também emitiram um decreto constitucional limitando os poderes do presidente eleito, e enfeixando mais poderes nas mãos dos militares.

O medo dos liberais e a esquerda era que a Fraternidade Muçulmana fosse o partido nazista do Egito – que estariam fingindo ser democratas até chegarem ao poder, quando então se recusariam a deixá-lo e eliminariam o processo democrático, para estabelecer uma ditadura islamista.

Incêndio do Reichtag (Parlamento alemão) provocado pelos nazistas  em 27/2/1933

Que juízes nomeados por Mubarak tenham dissolvido um parlamento democraticamente eleito não pareceu incomodar muito os liberais e esquerdistas, mas horrorizaram-se quando Mursi assinou seu Decreto Constitucional, que visava a conter o poder dos juízes de Mubarak, que o próprio Mursi tentara depor, sem sucesso. De fato, o Decreto Constitucional foi visto como uma espécie de “Decreto do Incêndio do Reichstag” – o que bem poderia ter sido. Mursi logo voltaria atrás e cancelaria o Decreto, em resposta à manifestação popular. Mais recentemente, já se manifestou arrependido de tê-lo assinado.

Os feitos de Mursi

O governo Mursi pareceu surpreendentemente dócil e amigável em relação a interesses ocidentais, inclusive em relação a Israel, cujo presidente Shimon Peres foi chamado, por Mursi, de “meu caro amigo” em carta presidencial oficial. Ao contrário da esperada crescente amizade com o Hamás, o governo Mursi fechou mais vezes a fronteira em Rafah, que Mubarak; a coordenação de segurança com Israel tornou-se mais íntima que nos tempos de Mubarak; e, para piorar ainda mais as coisas, Mursi, com o exército egípcio e a ajuda dos norte-americanos, destruiu a maior parte dos túneis entre Gaza e o Sinai, construídos por palestinos para trazer alimentos e bens, durante o interminável sítio desde 2005 – e que nem Mubarak atrevera-se a destruir. Mursi fez ainda mais, ao mediar conversas entre Israel e o Hamás durante o mais recente ataque israelense contra Gaza; e garantiu que o Hamás não voltaria a lançar foguetes contra Israel, sem garantir qualquer contrapartida israelense. É verdade que Mursi recusou-se a reunir-se com líderes israelenses, mas até Mubarak recusou-se a visitar Israel durante anos, antes de ser derrubado, e retirou de Israel o embaixador egípcio, como protesto contra políticas israelenses. Um dos principais atos de Mursi antes de ser recentemente derrubado não foi fechar a embaixada israelense, como amigos e inimigos dos islamistas diziam que ele faria. Em vez disso, fechou a embaixada síria, em apoio à insurreição islamista de direita em curso na Síria.

Hosni Mubarak
No poder, Mursi e seu governo deram continuidade a políticas de Mubarak, de reduzir o setor público e os gastos sociais em guerra contra os pobres egípcios, a maioria da população, e impulsionaram políticas econômicas neoliberais a favor dos ricos e poderosos, inclusive um acordo com o FMI (jamais formalizado, não por falta de empenho de Mursi), que ampliaria ainda mais as medidas de austeridade já aplicadas contra os pobres. De fato, Mursi nada fez para alterar as leis trabalhistas e tributárias, implantadas sempre para favorecer os ricos e oprimir os trabalhadores, empregados de classe média e os pobres em geral. Mursi não processou os generais por crimes pelos quais têm sido denunciados repetidas vezes (em vez disso, cobriu-os de honras de estado e prêmios e converteu vários dos generais que aposentou em conselheiros do presidente); não levou a julgamento a corrupta burguesia mubarakista que pilhou o Egito durante três décadas e meia. Tampouco levou a julgamento o aparelho de segurança, que manteve, o mesmo que continuou a reprimir as manifestações no Egito durante seu governo.

Como presidente, Mursi – saído da ala direita e neoliberal da Fraternidade Muçulmana (se comparado a ‘Abd al-Mun’im Abu al-Futuh, mais “centrista”, que também concorreu à presidência e perdeu as eleições) – estava interessado numa aliança entre a burguesia islamista neoliberal, cujo membro mais visível é Khayrat al-Shatir (que foi impedido de concorrer à presidência por tribunais mubarakistas), e a burguesia mubarakista.

Khayrat al-Shatir
Diferentes de al-Shatir, filho de um rico comerciante, que fez sua fortuna no Egito, muitos dos islamistas ricos, embora não todos, fizeram as respectivas fortunas no Golfo. Foram alijados, pode-se dizer, impedidos de participar da pilhagem do Egito, que ficou reservada aos empresários do círculo mais íntimo de Mubarak. E aqueles alijados passaram, agora, a aspirar a um lugar na mesa do banquete da pilhagem no Egito. Mursi obteve o aval dos militares e a aprovação dos EUA, pelo menos até a semana passada, pelo muito que tentou convencer a burguesia mubarakista a permitir que os islamistas partilhassem da pilhagem do Egito. Mas a burguesia mubarakista jamais cedeu nem um palmo de terreno.

A resposta dos mubarakistas

A burguesia mubarakista respondeu que o Egito pertencia a eles; que só eles continuariam a pilhá-lo, sozinhos (embora sempre tenham incluído na pilhagem os norte-americanos, sauditas, emiradis e, claro, os israelenses); e que não permitiriam que islamistas começassem a mover-se no território deles. Tendo alijado os pobres egípcios, os camponeses, os operários e as classes médias de baixa renda, quando preferiu favorecer a cúpula da Fraternidade Muçulmana e as burguesias islamistas e mubarakistas, além dos militares, Mursi não encontrou outro grupo, exceto a Fraternidade Muçulmana, no qual se apoiar, depois que o exército o abandonou e a coalizão que conspirava com os militares intensificou os ataques contra o governo.

Mamdouh Hamzah
A burguesia mubarakista pôs todo o seu império de mídia a operar furiosamente contra Mursi e a Fraternidade Muçulmana. Semana após semana, hora após hora, puseram em campo pela televisão, pelos jornais, nas mídias sociais – especialmente pela empresa Facebook, mas também pela empresa Twitter – uma campanha devilificaçãodemonização, de incansável tiroteio. Jornalistas apresentadores de programas de televisão puseram-se a pregar, até, a derrubada violenta do governo de Mursi. Membros da oposição, como o engenheiro e milionário Mamdouh Hamzah, convocaram claramente o exército para que derrubasse o governo eleito.

Houve campanhas também financiadas pelos sauditas e emiradis, contra o Qatar, patrocinador da Fraternidade Muçulmana em todo o mundo árabe, apresentado como o único monstro financeiro dedicado a comprar tudo no Egito, inclusive o Canal de Suez e as pirâmides. O comediante Bassem Youssef (muito popular entre a burguesia e as elites endinheiradas do Cairo e Alexandria, mas praticamente desconhecido da maioria dos pobres egípcios nas cidades e no interior do país – porque não entendem a maioria de suas referências ocidentais e ao mundo dos ricos) pôs-se a demonizar o Qatar com uma paródia de um canto nacionalista árabe, dos anos 50s, em que se falava do Qatar não como “a pátria árabe”, mas como objeto de adulação, por conta dos gordos investimentos qataris no Egito (alguns reais, outros inventados). Ninguém, nem na imprensa ,nem pelos teatros da cidade deu-se o trabalho de explicar que os investimentos de empresas sauditas, emiratis e norte-americanas (e as propriedades que já têm em solo egípcio) excedem em muito tudo que os vorazes qataris possuem ou são apresentados como se possuíssem. O Qatar era o demônio da vez.

A ironia é que, enquanto os qataris sempre foram patrocinadores e engenheiros das tomadas pela Fraternidade Muçulmana em todos os países árabes nos quais houve levantes, inclusive no Egito, ou onde sofreram o correspondente revés imposto pelos qataris, como na Líbia e até na Síria, os sauditas e emiradis sempre foram ativos patrocinadores das contrarrevoluções e dos antigos regimes.

Bassem Youssef
Enquanto isso, a imprensa e os especialistas “midiáticos” continuam a falar de Mursi como o novo “Hitler” e da Fraternidade Muçulmana como “Partido Nazista”. O altamente ocidentalizado Bassem Youssef chegou a exibir a bandeira nazista num dos episódios de seu programa de televisão, como se fosse a bandeira da Fraternidade Muçulmana, convencido de que a bandeira nazista seria facilmente identificada pelos egípcios e que provocaria horror. A julgar pela reação das claques que formam o público daquele programa, e que reagiu com indiferença à bandeira (que a maioria dos egípcios simplesmente não conhece, diferentes nisso dos públicos ocidentais, ávidos consumidores de filmes de Hollywood sobre a 2ª Guerra Mundial); exceto em alguns círculos políticos e intelectuais, a cena teve impacto limitado. Mas tampouco faltariam colunistas de jornais e acadêmicos, a repetir as analogias com Hitler e os nazistas. Um colunista de jornal equiparou o recentemente indicado Ministro da Cultura, a Goebbels. Mais grave que essa comparação, apenas retórica, contudo, foi o conjunto da obra – uma completa barragem de propaganda e mentiras anti-Mursi distribuída pelas grandes empresas de mídia. Essa, sim, foi campanha de tal porte, que bem mereceria ser comparada aos feitos de Goebbels.

Gamal Abd El Nasser
Deve-se ter em conta que as acusações de nazistas são frequentemente usadas no mundo da política para encobrir vários tipos de golpe.
Mursi não é sequer o primeiro presidente egípcio acusado de ser “um novo Hitler”. Em 1954, à luz do “Caso Lavon”, Israel chamou Nasser de “Hitler do Nilo”, por perseguir espiões e terroristas israelenses. Franceses e britânicos fizeram o mesmo, quando se preparavam para invadir o Egito, em 1956 – e divulgavam que estariam combatendo um Nasser fascista: apresentavam-se assim como antifascistas, quando, de fato, atacavam presidente anti-imperialista.

Os liberais ocidentais que apoiaram a invasão dos EUA na Península Arábica em 1991 e no Iraque em 2003 para derrubar Saddam, também muito falavam do próprio antifascismo, para encobrir o ataque a inimigo anti-imperialista.

Mas a ninguém da imprensa ou a nenhum especialista midiático jamais ocorreu chamar Hosni Mubarak, ditador por 30 anos, de Hitler. Ironicamente, o único presidente egípcio que flertou com o nazismo, embora só na juventude, foi ninguém menos que Anwar Sadat.

Salvador Allende
No caso de Mursi, a campanha midiática contra ele e a Fraternidade Muçulmana, capitaneada pelas redes CBC e ONTV de televisão por satélite (ambas as empresas de propriedade de elementos da burguesia mubarakista), ultrapassou em muito a campanha que a CIA patrocinou, pelo jornal El Mercurio, contra o presidente chileno Salvador Allende, antes de ser derrubado por golpe também patrocinado pela CIA em 1973. Não estou dizendo que Mursi seja um Allende, mas, sim, que Mursi tem inimigos que não são totalmente diferentes dos inimigos que Allende enfrentou. (De fato, também houve marchas de mulheres de classe média que batiam panelas, e sindicalistas do sindicato dos caminhoneiros, no Chile, dentre outros setores, que fizeram greves e manifestações contra o governo Allende).

Circularam boatos de que o governo de Mursi, anti-palestinos e cada vez mais anti-Hamás, estaria fornecendo eletricidade aos habitantes de Gaza pobres e sitiados (boatos que já se comprovaram falsos), eletricidade a qual o governo Mursi estaria roubando do povo egípcio e cujo roubo seria a causa de inúmeros apagões no Cairo e por todo o país.

Outros boatos diziam que Mursi estaria entregando o Sinai ao Hamás e aos palestinos. Ainda outros boatos diziam que elementos do Hamás estariam sendo “importados”, para provocar liberais e a esquerda egípcios, que se opunham às políticas de Mursi. Apenas uma semana antes de ser deposto, circularam boatos, sem nem vestígio de qualquer prova, segundo os quais Mursi teria importado 1.500 homens do Hamás para que atacassem manifestantes anti-Mursi que se preparavam para as grandes manifestações públicas do dia 30 de junho que exigiam a renúncia do presidente.

A histeria coletiva estimulada pela imprensa e que tomou conta do país foi de tal magnitude, que até liberais e acadêmicos de esquerda conhecidos pelo pensamento moderado, desertaram de suas faculdades críticas e mergulharam de cabeça no universo dos boatos distribuídos por Facebook e veículos de jornalismo marrom, que se tornaram sua única fonte primária de formação e de informação.

A confrontação

Não há qualquer dúvida de que o governo de Mursi não dava sinais de que desistiria de seus planos, as estupidezes incluídas (para nem falar das políticas liberais e da quase inacreditável incompetência para governar o país, que já bastariam para desacreditá-lo completamente), a começar pela inclusão de membros da Fraternidade Muçulmana e outras forças islamistas em posições chaves no governo, nas comissões constitucionais e em toda a burocracia. É verdade que Mursi convidou muitos nomes da oposição, durante todo o ano em que permaneceu no poder, para compor suas comissões, o gabinete, para integrar-se à burocracia e, até, para compor sua equipe de assessores (alguns aceitaram e participaram do governo, por algum tempo). Mas a maioria rejeitou os convites, temendo, legitimamente em alguns casos, que viessem a ser usados como máscara para o que temiam que fosse um programa de “Ikhwanization” (em árabe, a Fraternidade Muçulmana recebe o “apelido” de Ikhwan) do estado – o que foi astronomicamente exagerado em todas as mídias mubarakistas. Outros renunciaram aos postos de conselheiros que haviam aceitado, porque Mursi recusou-se a seguir seus conselhos – coisa que, segundo fontes da Fraternidade Muçulmana, também acontecia com conselhos que recebia de conselheiros de sua própria Fraternidade.

Mas a incompetência da presidência da Fraternidade Muçulmana não foi a única razão pela qual o país deteriorou-se durante o ano passado. Para cada lado para o qual Mursi olhasse, os mubarakistas criavam obstáculos contra qualquer movimento. A burocracia do governo recusava-se a cooperar com o governo; os juízes o detinham a cada passo que tentasse, a polícia recusava-se a policiar as ruas. A burguesia mubarakista, como se vai revelando aos poucos na imprensa internacional, fabricou uma crise de energia que estaria causando racionamentos massivos de combustíveis e eletricidade, e que desapareceu completamente, por milagre, no instante em que Morsi foi derrubado do poder.

Tamarod...
Assim se construiu o cenário para uma mobilização de massas de grandes proporções que um novo “movimento” que se autodenominou “Tamarod” (palavra que, de fato, significa “motim” e em alguns contextos “rebelião”, mas que absolutamente não significa “rebelde” como seus fundadores, apoiadores e toda a mídia ocidental traduziram, erradamente), e que convocou as demonstrações do dia 30 de junho, primeiro aniversário da posse de Mursi como presidente do Egito. Todo o espectro da coalizão, que se formou e consolidou-se depois da eleição de Mursi, inclusive a Frente de Salvação Nacional, formada rapidamente, logo depois de Mursi lançar seu Decreto Constitucional, uniu-se para exigir que Mursi deixasse o governo. Conseguiram mobilizar milhões de pessoas nas ruas, culminando nas manifestações de 30 de junho.

Firmou-se um acordo com o exército (e os EUA), na sequência do qual o exército declarou um golpe, derrubou Mursi e começou furiosa caça às bruxas, à qual se uniram entusiasticamente membros da população, interessados em dar cabo da Fraternidade Muçulmana. Queimaram-se prédios e escritórios e instalações da Fraternidade Muçulmana em todo o país (ações comandadas sempre por manifestantes “pacíficos”), inclusive o escritório central, no Cairo. O golpe não foi chamado de golpe, e membros da coalizão popular que o apoiou declararam que quem falar de “golpe” será declarado “inimigo do povo egípcio” – como muita gente divulgou por Twitter e Facebook.

Mohamed El Baradei
Redes e canais islamistas de televisão foram fechados, minutos depois de o golpe ter sido anunciado; Mursi foi sequestrado pelos militares e mantido preso em prédio militar cuja localização é mantida em segredo, e os mais altos membros da Fraternidade Muçulmana ou foram também presos, ou tornaram-se fugitivos. Os mais altos membros da Frente de Salvação Nacional e o nada carismático Mohamed El-Baradei não hesitaram em defender a repressão militar em contatos com líderes e políticos ocidentais, esperando ser indicados para o governo pós-golpe, como prêmio de reconhecimento por seus esforços para vender ao mundo, como se fosse revolução democrática, o golpe de estado; e, mesmo, para convocar um “recalldas eleições”.

Um dos primeiros atos dos líderes do golpe foi fechar indefinidamente a fronteira de Gaza, estrangulando, efetivamente, a Faixa e sua população de palestinos. Trataram também, imediatamente, de demolir os túneis que haviam escapado da mais recente campanha de destruição. A xenofobia no Egito, contra palestinos, cada vez mais também contra sírios e iraquianos, já assume proporções fascistas. Os líderes do golpe distribuíram um pronunciamento ameaçando com prisão e outras punições, os cidadãos daquelas nacionalidades e residentes no Egito que participassem das manifestações.

A cena festiva que se vê no Cairo evoca ironicamente o triunfalismo fascista e suas festividades na Europa dos anos 1930s, muito mais que manifestações democráticas. Mas quem declarou o golpe não foi a Fraternidade Muçulmana, como fomos preparados para esperar ao longo de um ano inteiro, nem foi a Fraternidade quem meteu a oposição na cadeia e fechou suas estações de televisão, queimou seus escritórios e caça a oposição pelas ruas, conclamando a população a delatar oposicionistas à polícia.

De fato, durante o ano de governo de Mursi nenhuma televisão ou jornal foi fechado, nem, e especialmente, os muitos deles que pregavam a rebelião e a derrubada violenta de governo democraticamente eleito. Sim, alguns jornalistas foram processados por insultar o presidente no Egito, mas pode-se dizer que nenhum outro país algum dia conheceu nem uma pequena parte dos insultos que Mursi recebeu durante seu governo, (para nem falar do tipo de linguagem que a imprensa usou para humilhá-lo) e crime pelo qual alguns foram, quando muito, multados. Embora não tenha conseguido intervir com sucesso na mídia de propriedade privada, Mursi agiu nos jornais estatais e substituiu seus editores, muitos dos quais eram mubarakistas, mas muitos dos quais, também, eram editores eleitos, com pauta própria.

Movimento Tamarod no elegante bairro de Zamalek no Cairo em 11/7/2013
Nas ruas do Cairo, sente-se o terror da caça às bruxas, e os alvos já não são apenas os que se identifiquem como membros da Fraternidade Muçulmana. Porteiros pró-golpe de prédios elegantes no bairro de Zamalek – para dar um pequeno exemplo – perseguem e ameaçam outros porteiros, acusados de apoiar a Fraternidade. Esses, já não saem de casa, temendo pela própria vida, desde que o golpe foi anunciado. O que está acontecendo em bairros mais divididos de classe média, nas periferias mais pobres, nas cidades menores e no interior do país é muito pior que ataques a tiros e incêndios, nos quais se envolvem os dois lados. O próprio exército atirou e matou dezenas de manifestantes pró-Mursi que se opunham ao golpe. Somado à adulação fascista ao exército e à polícia que se vê à plena força, isso pode bem indicar o início de uma tão temida guerra civil e depogroms massivos contra os que sejam identificados como “inimigos” do Egito e do povo egípcio.

Os liberais e a  esquerda

Como explicar que liberais e a esquerda apoiem golpe contra a ordem democrática pela qual lutaram, encenem uma “revolução” contra a “democracia”, em aliança com a burguesia mubarakista e com os próprios militares que tão duramente criticavam há apenas um ano, até que cedessem o poder a um governo eleito?

Os militares e a burguesia e os juízes de Mubarak evidentemente não mudaram. Mas, sim, os liberais e a esquerda mudaram. Seu raciocínio faz lembrar o filme futurista distópico hollywoodiano A nova lei (Minority Report, 2002), no qual as autoridades processam pessoas por “pré-crimes” – quer dizer, por crimes que cometeriam no futuro, se não fossem presos antes de cometê-los. Alegam que a Fraternidade Muçulmana daria um golpe antidemocrático e põem-se a reprimir os Irmãos; e quanto ao futuro crime que previram que a Fraternidade e Mursi cometeriam, a coalizão anti-Mursi teve de intervir e puni-los hoje, para impedir governo eleito de agredir a democracia... no futuro!

Mas foram os liberais e a esquerda que ajudaram a preparar e dar o golpe, e que puseram fim a uma democracia eleitoral incipiente, e que hoje perseguem e processam a Fraternidade Muçulmana por crimes reais e imaginários, não o contrário. Dado que seu golpe foi popular, insistem eles, “conclui-se” que manifesta a vontade do povo. Mas, então, o povo também queria o fascismo, e também quis o nazismo? Como seria esse tipo de suposto argumento pró-democracia, como dizem que é? Respondem que trabalhadores e pobres uniram-se às manifestações. Mas também houve trabalhadores e pobres nos comícios fascistas e nazistas. E também os há nos comícios da Fraternidade Muçulmana.

Manifestação de partidários da Irmandade Muçulmana em 26/12/2012
A esquerda está dizendo que seu apoio ao golpe e sua aliança com a burguesia mubarakista comprador são, na verdade, de natureza anti-imperialista e que se unem contra a mídia ocidental pela cobertura atual, que seria “orientalista”, de seu golpe (como se a mídia ocidental algum dia tivesse sido outra coisa, além de orientalista, na cobertura de nossa parte do mundo, em todos os tempos), cobertura que consideram hostil; e para que Obama tenha talvez de cortar a ajuda militar, obedecendo à lei que o impede de estender sua ajuda a líderes de golpes no Terceiro Mundo (quando se sabe que Carter e Reagan encontraram meio para burlar aquelas leis nos anos 1970s e 1980s, quando subcontrataram Israel para que ajudasse os ditadores aliados dos EUA na América do Sul e Central e na África do Sul do Apartheid; e Obama, sem dúvida, também encontrará meio para burlar as mesmas leis). Seja como for, a ajuda militar dos EUA ao Egito para 2013 já foi paga; e a ajuda para 2014 ainda nem entrou na pauta de discussões do Congresso e não entrará antes do outono. Mas que ninguém se preocupe: altos diplomatas israelenses já estão empenhados nolobby, na Casa Branca e no Departamento de Defesa dos EUA, para que a ajuda militar ao Egito não seja interrompida.

Outro argumento, esse legítimo, que liberais e a esquerda apresentam é que quando eles e outros uniram-se ao levante de janeiro e fevereiro de 2011 que levou à derrubada de Mubarak e à tomada do governo pelo exército que, desde então, passou a governar diretamente o país, poucos falaram daquele levante como “golpe”: falavam de “revolução. E, hoje, quando o que se vê é outro levante massivo e o exército outra vez interveio, mas sem se autodesignar para governar, não falta quem fale de “golpe”.

Esse raciocínio é correto, embora pouco preciso, porque deixa sem considerar a questão central. Em fevereiro de 2011, o exército recusou-se a receber ordens de um ditador não eleito e não atirou contra civis, o que ajudou a derrubar o ditador; e em julho de 2013, o exército derrubou presidente eleito por mais da metade dos eleitores egípcios em eleições democráticas.

Liberais e a esquerda que hoje apoiam o golpe estão furiosos contra os EUA e gritam “Imperialistas” contra os norte-americanos que não apoiaram imediatamente sua revolta contra a democracia, aparentemente sem considerar o quanto os EUA de fato fizeram para construir esse golpe por trás da cena. Publicamente, Obama tem tentado todas as espécies de acrobacias verbais para acalmar os liberais e a esquerda, cuidando para não chamar o golpe, de golpe. A fúria endereçada contra os EUA, contudo, não é necessariamente anti-imperialista. Ela é, muito mais, disparada por uma ferida narcísica: porque os EUA (como o exército egípcio) aliaram-se, embora temporariamente, com a Fraternidade, não com os liberais e a esquerda e claramente, depois, abandonaram a Fraternidade e deram luz verde para o golpe. O muito que gritam é o modo de eles tentarem atrair os EUA de volta para o campo deles... onde os EUA já estão.

Abdel Fattah Al Sisi
Wall Street Journal já manifestou suas expectativas e esperanças de que o general Sisi venha a ser o Pinochet do Egito. Alguns liberais têm reclamado que, se os Republicanos estivessem no poder, não teriam dado apenas a resposta “soft” ao seu golpe, que receberam, dizem eles, dos Democratas. Mas os EUA, quanto a isso, não dormiram no ponto.

Os EUA são aliados de todos os partidos no Egito e estão dispostos a deixar que os egípcios escolham quem governará, para que os EUA, então, possam pôr-se a lhes dar ordens como sempre deram primeiro a Mubarak, depois à Fraternidade Muçulmana. A única coisa que ocupa o pensamento dos norte-americanos é que seus interesses estejam bem protegidos – e, até agora, ninguém, nenhum membro das coalizões pró-Mursi e anti-Mursi ousou ameaçar aqueles interesses. Todos só fazem mostrar o quanto desejam servir aos interesses dos EUA: basta que os EUA os apoiem. Nos últimos dois anos e meio, os norte-americanos esforçam-se para determinar quem, dentre todos os que disputam a posse dos meios para bem servi-los, conseguirá, com mais sucesso, estabilizar o país, para que os EUA possam continuar a controlar tudo, como antes.

Nazistas, islamistas, liberais e a esquerda egipcia

Há um ano, só ouvimos que Mursi é Hitler, que os Irmãos são nazistas, e que estão consolidando o próprio poder para que, adiante, possam atacar tudo e todos. É possível que tenham tais planos, mas até hoje não se viu nem vestígio de prova disso. O que aconteceu foi exatamente o oposto: foi a coalizão de liberais, nasseristas, esquerdistas, salafistas e a burguesia mubarakista que conclamou antes e festejou e apoiou depois o golpe, que foi obra do exército de Mubarak. Diferente da Fraternidade Muçulmana que jamais controlou o exército ou a polícia, esses dois corpos continuam a ser absolutamente fiéis à burguesia mubarakista – da qual os liberais e a esquerda são aliados.

Os egípcios foram inundados com imagens de que os “islamofascistas” estariam destruindo a cultura do Egito e sua identidade, com intolerância, pensamento estreito, nenhum preocupação inclusivista e políticas antidemocráticas. Mas foram os liberais e  a esquerda egípicia – talvez se os possa chamar de “fascistas seculares” – que se comprovaram menos abertos, menos tolerantes e com certeza menos democráticos que os “islamofascistas”.

Nos EUA, um ditado ensina que “conservador é um liberal de terno e colete” – significando de modo norte-americano e classista, que quando o liberal se envolve com os pobres, é para ser contra eles... o que o converte em conservador. No caso do Egito, pode-se facilmente dizer que “secular fascista é um democrata liberal que foi derrotado pelos islamistas em eleições democráticas”.

Golpe Militar no Egito apoiado pela esquerda
O golpe do exército, que a esquerda egípcia, dentre outros, apoiam, não foi golpe dado por oficiais de classe média com consciência social e anti-imperialista que contam com o apoio de forças progressistas anticapitalistas para derrubar o controle capitalista local e imperial e o ditador que o comanda (quando os Oficiais Livres organizaram seu golpe em 1952, em apenas poucas semanas já haviam deslocado os senhores feudais e redistribuíram a terra entre os camponeses pobres). O golpe, hoje, foi dado por generais de exército que recebem gorda pensão anual, a título de ajuda militar, dos EUA imperiais, e que sempre protegeram Mubarak e sua burguesia. Essa liderança militar derrubou o presidente democraticamente eleito (eleito, apesar de sua incompetência no governo e os serviços que prestavam ao capital local e internacional).

Alguns da esquerda que hoje festejam o golpe parecem sentir que a mobilização foi bem sucedida porque agora o povo é educado e consciente de seus direitos que a Fraternidade Muçulmana estava assaltando. Mas a educação que os membros da coalizão anti-Mursi receberam, incluídos aí os trabalhadores e os pobres que se uniram aos comícios, é a mesma educação distribuída pela burguesia mubarakista, que usa para isso seus impérios midiáticos. Não foi educação que enfatizasse as políticas neoliberais e contra-pobres da Fraternidade Muçulmana, que destacasse os direitos dos trabalhadores, os direitos dos camponeses, o direito ao salário mínimo, etc..

A educação que o império midiático mubarakista distribuiu é educação que não educa para a libertação dos pobres, dos trabalhadores, dos camponeses, da baixa classe média do Egito, para alertá-los contra a pilhagem do Egito e da vida dos egípcios, levada a cabo por agentes capitalistas e imperialistas. Aquela é educação que só educa a burguesia “secular” mubarakista e seus sócios, ensinando-a a competir contra a burguesia neoliberal da Fraternidade Muçulmana e de seus patrocinadores qataris.

O fato de o Rei da Arábia Saudita e o Ministro de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos, patrocinadores dos norte-americanos e da burguesia mubarakista, terem sido os primeiros a enviar congratulações aos líderes do golpe, minutos depois de o golpe ter acontecido, mostra claramente quem, na avaliação deles, foi libertado de quem. Poucas horas depois do golpe, a burguesia mubarakista também celebrava.

Mohamed Fuad
Na 5ª-feira, 4 de julho, o cantor egípcio Mohamed Fuad, que chorara na televisão dois anos e meio antes, manifestando sua tristeza e desespero pela derrubada de seu amado Mubarak, foi convidado para abrir o pregão da Bolsa de Valores do Cairo, que ganharam bilhões de libras, desde o golpe. 

Se os qataris e a burguesia da Fraternidade Muçulmana venceram a primeira batalha contra os sauditas com a derrubada de Mubarak e, em seguida, também a segunda batalha, quando a Fraternidade Muçulmana foi eleita, os sauditas e a burguesia mubarakista lançaram sua última batalha - que venceram, com a remoção da Fraternidade Muçulmana – festejada como a vitória final na guerra pelo Egito.

Os objetivos do levante egípcio desde o início incluíam, como objetivo primário, a justiça social. Ambos, mubarakistas e Fraternidade Muçulmana tinha política unificada contra a agenda de justiça social do levante. Mas o golpe anti-Fraternidade, que começou violento e ainda levará muitos de seus apoiadores a recorrer a meios violentos, agora que foram derrotadas todas as manifestações pacíficas, transformaram o levante, de levante contra o regime mubarakista e seu aparelho de segurança e de negócios, em movimento que agora se incorporou à guerra incansável que Mubarak sempre fez contra a Fraternidade.

Se liberais e a esquerda querem ver democracia real com segurança social e padrões de vida decentes para a maioria dos egípcios que são pobres, então a derrubada do governo da Fraternidade Muçulmana, por força militar, só continuará a impedir que tudo aquilo se concretize no Egito. De fato, a derrubada do governo da Fraternidade Muçulmana, por força militar, só trará mais injustiça econômica e mais repressão.

Se esquerda e liberais calculam que sua aliança com a burguesia mubarakista e o exército seja aliança tática e temporária, e que conseguirão ultrapassá-la e arrancar o poder do exército, como arrancaram da Fraternidade, o futuro se encarregará de comprovar que esse projeto não passa de triunfalismo ingênuo ou de otimismo teatralizado. Mas já é bem claro hoje, com o crescimento massivo da repressão policial e militar – e repressão para a qual até o povo está sendo arrastado – que aquela aliança só fez reforçar os mubarakistas e o exército, além de enfraquecer qualquer voz que ainda clame por alguma futura democracia no Egito, real ou apenas formal.

Capturado pelas festividades populares fascistas em torno do exército, o Egito é hoje governado por um exército cujas lideranças foram nomeadas por Mubarak e serviram ao governo de Mubarak; e tem por presidente um juiz nomeado por Mubarak; e sua polícia é a mesma polícia usada por Mubarak. Chamar de golpe ou não chamar de golpe, cada um decida como preferir.

O que se vê hoje no Egito é mubarakismo sem Mubarak.

[*] Joseph Massad leciona Política Árabe Moderna e História Intelectual na Universidade de Columbia em New YorkÉ autor de The Persistence of the Palestinian Question: Essays on Zionism and the Palestinians.