sábado, 20 de julho de 2013

A revolução egípcia traiu-se ela mesma

 [*] Ramzy BaroudAsia Times Online  

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mohamed ElBaradei
“A revolução morreu. Longa vida à revolução” – escreveu Eric Walberg, autor e especialista em política do Oriente Médio, logo depois que os militares egípcios derrubaram o presidente democraticamente eleito no Egito, Mohammed Mursi, dia 3 de julho. Mas, com mais precisão, deve-se dizer que a revolução foi assassinada, morte lenta e terrível, por vários, muitos assassinos.

Mohamed ElBaradei, elitista liberal, com triste currículo a serviço das potências ocidentais ao longo de toda uma glamorosa carreira como diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, é exemplo que se destaca, da crise política e moral em que o Egito mergulhou desde a derrubada do ditador Use Mubarak.

ElBaradei teve papel negativo importante nessa triste saga, desde seu espetaculoso retorno ao Egito durante a revolução de janeiro de 2011 – apresentado agora como libertador, sensível, educado no Ocidente – e único substituto “sério” para o primeiro presidente que o Egito jamais elegeu, agora derrubado por militares. Esse duplifalar é manifestação não só de oportunismo político – e ElBaradei sempre foi oportunista no comando de seu Partido Dostour – mas de toda a filosofia política da Frente de Salvação Nacional, grupo guarda-chuva criado para abrigar toda a oposição e que ElBaradei coordena.

Homem de falar suave, que só muito fracamente e muito raramente se manifestou contra as pressões injustas impostas ao Iraque ao tempo em que presidia a AIEA, ElBaradei foi miraculosamente convertido em político duro, com muitas exigências e altíssimas expectativas.

O seu partido, assim como o restante da oposição egípcia, resultaram sempre extraordinariamente mal posicionados em todas as eleições democráticas e no referendo que o Egito conheceu desde o fim do governo Mubarak. A democracia provou que ElBaradei e seu partido são irrelevantes. Mas, depois de cada fracasso eleitoral, ElBaradei e a oposição apareciam falando cada vez mais alto, por ação exclusiva de um aparelho ‘midiático’ operante 24 horas por dia, sete dias por semana, em operação coletiva, coordenada, para alterar o quadro que as eleições haviam definido, sempre a favor de ElBaradei e da oposição, fosse qual fosse o resultado das urnas egípcias.

Abdel-Fattah el-Sisi
Pouco depois de o general Abdel-Fattah el-Sisi ter anunciado um golpe militar, dia 4 de julho, uma evidente e bem organizada conspiração que envolveu o exército; parte significativa da imprensa e demais veículos de mídia; a oposição e juízes dos tribunais da era Mubarak silenciou a Fraternidade Muçulmana – que tinha mídia sua, organizada e operante. O nível de organização que se viu nas ações dos conspiradores golpistas não deixa dúvidas de que os militares mentiam quando, dois dias antes, haviam dado 48 horas para que os partidos políticos conciliassem suas diferenças e resolvessem suas disputas.

Nunca houve espaço para qualquer conciliação entre ElBaradei e os partidos que lhe fazem oposição – o que o exército sabia perfeitamente bem. Dia 30 de junho, um ano depois de Mursi ter assumido a presidência, depois de eleições transparentes, a oposição organizou-se, com o sinistro objetivo de derrubar, a qualquer custo, o presidente eleito.

Alguns convocaram o exército, que já se provou vicioso e nada confiável, para liderar a transição “democrática”. ElBaradei convidou até apoiadores de antigo regime, para unirem-se à sua cruzada para depor a Fraternidade. A ideia era simples: reunir o maior número de pessoas nas ruas, declarar uma segunda revolução e convocar os militares para salvarem o Egito de Mursi e de um suposto desrespeito à vontade do povo.

Os militares, com um show repulsivo de benevolência cenografada, acorreram ao chamado de uns poucos, em nome do povo e da democracia. Prenderam o presidente, fecharam as redes de televisão islamistas, mataram muitos e prenderam centenas de eleitores do partido governante. E vieram os fogos de artifício, com ElBaradei e seus homens comemorando uma suposta “salvação” do Egito.

Mohamed Elmasry
Mas não era nada disso

Os donos dos meios de comunicação de massa da era Mubarak e membros chaves da oposição liberal e secular haviam-se unido para criar uma das mais efetivas campanhas de propaganda de que se tem notícia na história política recente, para demonizar Mursi e a Fraternidade Muçulmana – escreveu Mohamad Elmasry, da Universidade Americana no Cairo.

Nenhuma das empresas da imprensa-empresa no Egito jamais deixou de ser fiel ao antigo regime. Todas as grandes empresas de mídia permaneceram tão sujas e corruptas quanto foram nos tempos de Mubarak. Sempre estiveram naquele posto para servir aos interesses dos grandes comerciantes e das elites políticas. Mas, na realidade mutável do novo quadro político – três eleições democráticas e dois referendos, todos os pleitos vencidos por eleitores dos partidos que apóiam os islamistas – já não era possível para jornais e jornalistas e televisões continuarem a operar usando a mesma linguagem de antes. E todos esses empresários e empresas e jornalistas pularam então para dentro do vagão da revolução, usando o mesmo quadro de referências que sempre usaram, como sempre tivessem estado na vanguarda da luta por liberdade, igualdade e democracia.

As forças reacionárias no Egito, não só a mídia, mas também os juízes pró-Mubarak, os militares – empresários - comerciantes, etc., conseguiram sobreviver ao levante político, mas não por serem especialmente hábeis ou inteligentes. Aconteceu, isso sim, que encontraram muito espaço para se reagruparem e manobrar, porque uma oposição desesperada –El Baradei e companhia –, só cuidavam de atacar Mursi, de atacar a Fraternidade Muçulmana e de interromper o processo democrático que os levou legitimamente ao poder.

No desespero por mais e mais poder, todos esqueceram de considerar a revolução, seus objetivos iniciais. Assim desonraram a democracia, mas, mais grave que isso, puseram em risco o próprio futuro do Egito.

O que aconteceu no Egito, a começar pela “revolução” orquestrada de 30 de junho, do ultimatum que os militares lançaram, ao golpe militar, à vergonhosa reinvenção da velha ordem – acompanhada de prisões novamente cheias e com os mesmos tanques atacando civis desarmados – não foi frustrante só para a maioria dos egípcios. Foi também terrível choque para muitos, em outros países. O Egito que por um momento serviu de inspiração ao mundo, voltou ao ponto em que estava quando tudo começou.

Praça Tahrir no início da Primavera Árabe em 2011
Desde o início da chamada Primavera Árabe, houve intenso debate em torno de numerosas questões. Uma delas foi o papel da religião numa democracia saudável. O Egito, claro, estava no coração daquele debate, e cada vez que os egípcios iam às urnas, os eleitores como que, de certo modo, repetiam a mensagem de que desejavam ver alguma espécie de casamento entre o Islã e a democracia.

Jamais foi questão simples ou fácil, e até agora não há respostas convincentes. Mas, como em qualquer democracia saudável, a decisão final tem de caber ao povo. Absolutamente nada muda, se o voto e o desejo de um camponês pobre numa vila remota no interior do Egito não coincidem exatamente com a sensibilidade elitista de El Baradei.

É triste, mas não surpreende, que muitos dos idealistas que tomaram a Praça Tahrir em janeiro de 2011 e falavam de direitos iguais para todos, não sejam capazes de conviver com essa consequência da igualdade de direitos. Alguns reclamaram que décadas de marginalização sob Mubarak não habilitaram os egípcios pobres, analfabetos, sem qualquer educação formal a tomar decisões no campo da representação política ou de uma Constituição democrática.

E, numa triste virada histórica, aquelas mesmas forças estão hoje abertamente empenhadas num golpe para derrubar presidente democraticamente eleito e sem partido, ao mesmo tempo em que celebram a volta da opressão, como se fosse glorioso dia de liberdade. El Baradei pode assim voltar ao centro do palco, dando “aulas” aos egípcios pobres sobre o que é a verdadeira democracia – e por que, em vários sentidos, nenhuma maioria faz qualquer diferença.


[*] Ramzy Baroud é colunista internacional e editor do jornal Palestine Chronicle. seu último livro foi My Father was A Freedom Fighter: Gaza's Untold Story (Pluto Press) ainda sem tradução em português.

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