quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Bancarrota em casa e pelo mundo: A Síria mostra que Washington é ator geopolítico exaurido

[*] Finian CUNNINGHAM, Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

"Rebelde" lança granada (RPG) contra o Exército sírio  em Aleppo (9/10/2013)
A política dos EUA para a Síria poderia ser descrita como “uma comédia de erros”, se o custo, em sofrimento humano, não fosse tão brutal. Depois de criar um pandemônio de terrorismo e desrespeito à lei na Síria, com operações clandestinas de insurgência ao longo dos últimos dois anos e meio, o governo dos EUA parece agora um Dr. Frankenstein que perdeu o controle sobre a besta, ou, melhor dizendo, as bestas...

As criaturas, nascidas do laboratório norte-americanos de golpes para mudança de regime, têm várias formas, de selvagens esquadrões da morte em solo, a grupos de exilados políticos mantidos em hotéis 5 estrelas no Golfo Pérsico.

Mas nenhuma das criaturas parece obedecer ao suposto patrão-criador. A situação está evidentemente fora de controle, e os EUA mostram-se ao mundo como idiotas, loucos, impotentes.

Primeiro, Washington repetiu o pedido, essa semana, para que suas criaturas ativas na oposição síria, a Coalizão Nacional Síria (CNS), participe das conversações políticas de Genebra-2. Mas a CNS fez que nem ouviu.

Então, uma declaração conjunta do bando de mercenários de vários países reunido na Síria, essa semana, tratou de repudiar, furiosamente, publicamente, o CNS e todos os demais grupos políticos.


Tendo visto o fracasso dos grupos políticos que dizem representar a oposição e os grupos revolucionários (...), nós, comandantes dos grupos militares nas províncias do sul, declaramos que não reconhecemos nenhum dos grupos políticos que dizem nos representar e lhes retiramos o nosso apoio.

Foi a segunda bofetada aplicada na chamada Coalizão Nacional que o ocidente tanto promoveu e apoiou. Mês passado, 13 organizações insurgentes nas províncias do norte da Síria também distribuíram declaração em que rejeitam a coalizão e a declaram ilegítima, como representante política.

Significativamente, dentre esses 13 grupos que repudiaram a CNS estava a Frente Al-Nusra, afiliada da Al-Qaeda, e o Exército Sírio Livre. Os governos ocidentais dizm que apoiavam o Exército Sírio Livre do general Salim Idriss, porque ele seria líder “moderado”, sem associação com as redes de extremistas takfiri, como a Frente Al-Nusra.

Estranhamente, para os propagandistas pró-ocidente, o Exército Sírio Livre parece já não estar lendo os manuais e memorandos “certos”, e já se aliou publicamente aos “extremistas”. Em outras palavras, não há diferença alguma entre “moderados” e “extremistas”; ou entre “rebeldes do bem” e “rebeldes do mal”.

Mapa atualizado/legendado da Guerra na Síria até set/2013
(clique na imagem para visualizar)
Essa distinção sem qualquer fundamento na realidade já está sendo vista por todos, claramente, como ficção de propaganda, que governos ocidentais fabularam para criar, para eles mesmos, alguma cobertura política e moral para conseguirem inventar uma guerra criminosa de agressão à Síria – ocultados por trás da mentira de que estariam apoiando rebeldes “bons”, pró-democracia e pró-liberdade.

Vergonhosamente, a empresa-imprensa ocidental, chamada “indústria do jornalismo”, ajudou muito a armar essa fachada escandalosa, em vez de investigar rigorosamente os fatos e expor as mentiras.

A verdade é que governos ocidentais lançaram uma onda de terrorismo contra a Síria, desde março 2011, servindo-se como disfarce da “Primavera Árabe”, com vistas ao objetivo geopolítico de promover mais uma “mudança de regime”. Essa onda de agressão para desestabilizar o governo do presidente Bashar al-Assad sempre incluiu centenas de grupos de mercenários de variadas tendências extremistas, a maioria dos quais saídos de cerca de 30 países, dentre os quais Líbia, Tunísia, Egito, Arábia Saudita, Afeganistão e Rússia, além de estados ocidentais como Austrália, Grã-Bretanha, França e Canadá.

A ilusória divisão que o ocidente divulgou, entre “moderados” e “extremistas”, foi pelos ares nos massacres acontecidos na província de Latakia, no oeste da Síria, em agosto. Até a ONG Human Rights Watch, em geral muito atenta aos interesses da agenda política do ocidente, noticiou centenas de atrocidades contra civis em ataques a várias vilas na província de Latakia. Dentre essas atrocidades, o sequestro de mais de 200 mulheres e crianças, cujo destino ainda não se conhece até hoje. Há notícias, de fontes dignas de crédito, de que todos foram assassinados para “produzir” os cadáveres apresentados como vítimas do “ataque químico” de East Ghouta, dia 21/8. Durante o ataque em Latakia, o comandante do Exército Sírio Livre, general Idriss, foi filmado em campo, discursando sobre o sucesso da campanha que comandava.

"Rebeldes" da OTAN circulam por bairro semi destruído em Homs em 15/9/2013
O que se vê, pois, são os planos tantas vezes requentados, em que os EUA e seus aliados regionais, inundam a Síria com terroristas, ao mesmo tempo em que obram para construir um governo-à-espera, constituído de exilados carreiristas e políticos oportunistas. Esses fantoches políticos deveriam ter-se mudado para Damasco, para assumir o governo, no instante em que a população abandonasse a defesa do governo de Assad, apavorada sob a ameaça dos terroristas e dos esquadrões da morte. Mas nada aconteceu conforme o ocidente planejara.

A “mudança de regime” planejada para a Síria foi plano absolutamente insustentável, porque não levou em consideração a legitimidade do governo do presidente Assad; o profissionalismo do exército sírio; a robusta aliança regional entre Síria, Rússia e Irã; e a competência da diplomacia russa, sobretudo no Conselho de Segurança da ONU, onde os russos fizeram gorar, uma a uma, as manobras dos EUA. Além do mais, o eixo dos EUA não levou em consideração a forte oposição da opinião pública ocidental, farta de guerras, e contra as sujas maquinações imperialistas dos EUA no Oriente Médio.

Condenada a esse seu jogo incompetente, Washington vê-se agora às voltas com uma total confusão, cercada de incoerências, das quais não consegue safar-se. Seus mercenários em campo estão sendo derrotados e voltam-se uns contra os outros, em furiosas disputas internas. A Frente Al-Nusra, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante/Síria [orig. Islamic State of Iraq and Shams, ISIS] e o Exército Sírio Livre são hoje maior ameaça uns aos outros, do que ameaçam o Exército Nacional Sírio.

Mas, seja lá o que for que organize ou venha a forjar-se entre esses grupos, todos os seus movimentos e pensamentos são de furiosa rejeição à oposição política inventada no ocidente e apoiada pelo ocidente.

John Kerry
Como já se sabe, a oposição política arquitetada pelo ocidente já se declarou completamente contra qualquer diálogo em Genebra, apesar das insistentes súplicas do secretário de estado dos EUA, John Kerry. Esses peões políticos reagem provavelmente, afinal, e com fúria, ante a percepção de que foram usados de fato, sim, como peões.

As conversações de Genebra que visavam a constituir um novo governo de consenso na Síria, estavam marcadas para junho de 2012, mas, desde então, foram várias vezes adiadas, porque EUA e seus aliados no golpe da “mudança de regime”, Grã-Breanha e França, precisavam de tempo para convencer seus clientes sírios exilados a não participar. E, agora, os EUA precisam de que seus peões participem das conversações – porque Washington já tem de trabalhar com o fato de que foi derrotada no campo militar.

Quando a Rússia jogou uma boia de salvação política aos EUA, mês passado, sob a forma de acordo com a Síria para o desarmamento químico dos sírios, para ajudar Washington a extrair-se do desastroso caminho da guerra, parte do acordo implicava apressar a realização das conversações de Genebra, marcadas para o mês seguinte, na capital da Suíça.

Há apenas um ano, Washington e seus aliados só investiam no golpe da “mudança de regime” na Síria. Para isso, fomentaram uma guerra suja, contratando legiões de grupos terroristas mercenários. Nenhuma diferença fazia que muitos daqueles “contratados” fossem de organização franqueada da Al-Qaeda e estivessem na lista oficial dos EUA de organizações terroristas.

Toda essa agenda militar clandestina resultou em rematado fracasso. O ponto de virada aconteceu há cerca de quatro meses, com a derrota dos grupos mercenários na região de Qusayr. Com a agenda militar clandestina fazendo água, o falso ataque químico encenado em East Ghouta foi a última esperança de Washington para conseguir atacar diretamente a Síria, em guerra aberta, tentando ainda forçar sua obsessiva “mudança de regime”.

Washington e seus aliados, contudo, não previram a oposição firme de suas próprias populações a mais essa ação de aventureirismo militar. O eixo de Washington tampouco avaliou corretamente a resistência internacional a mais esse surto de militarismo. O alerta do presidente russo Vladimir Putin, contra qualquer ataque que os EUA tentassem, ressoou fundo em muita gente comum em todo o mundo, inclusive na opinião pública nos EUA e Europa.

Tendo-se deixado prender nas cordas, Washington recebeu uma ajuda luxuosa, quando o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, conseguiu arrancar de Kerry o acordo das armas químicas sírias, em Genebra, dia 14/9.

Aquele movimento dos russos repôs o processo político no centro do palco.

Esta semana, Lavrov disse que os EUA devem “usar todo o poder que tenham” para levar a oposição síria, com suas múltiplas facções, a fazer bom uso das conversações de Genebra-2.

Sergey Lavrov

O principal obstáculo nessa via política ainda é a incapacidade de nossos parceiros [os EUA] para conseguir que a oposição síria, sobre a qual os EUA sempre velaram, decida ir a Genebra e sentar para negociar com o governo.

Lavrov é um estadista e não usaria linguagem grosseira. Mas a essência do que disse pode ser facilmente traduzida: Washington criou tal monstruosidade na Síria, que agora já não tem poder para controlar seus próprios monstros.

Num mundo que já sabe que o governo dos EUA está quebrado, em total bancarrota financeira, já se vê também, claramente, que os EUA já são também força geopolítica falida. Em bancarrota em casa e pelo mundo, a Síria mostra que Washington é ator geopolítico exaurido.




[*] Finian Cunningham nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, em 1963. Especialista em política internacional. Autor de artigos para várias publicações e comentarista de mídia. Recentemente foi expulso do Bahrain (em 6/2011) por seu jornalismo crítico no qual destacou as violações dos direitos humanos por parte do regime barahini apoiado pelo Ocidente. É pós-graduado com mestrado em Química Agrícola e trabalhou como editor científico da Royal Society of Chemistry, Cambridge, Inglaterra, antes de seguir carreira no jornalismo. Também é músico e compositor. Por muitos anos, trabalhou como editor e articulista nos meios de comunicação tradicionais, incluindo os jornais Irish Times e The Independent. Atualmente está baseado na África Oriental, onde escreve um livro sobre o Bahrain e a Primavera Árabe.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O deserto da democracia de Israel: " Nosso povo quer queimar os africanos!"

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Netanyahu e a "bomba" do Irã
Da tribuna da Assembleia Geral da ONU, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu dedicou-se a aproximar e confundir os mais assustadores detalhes de males feitos e a serem cometidos pelo Irã e imagens de judeus “aterrorizados” e “deixados à morte” por antissemitas na Europa do século 19. Dirigidas contra o movimento de aproximação entre EUA e Irã e pela via diplomática, e falando a um público de norte-americanos já fartos de guerras, as frases desatinadas de Netanyahu ameaçam fazer dele figura ainda mais diminuída, sem argumentos, desesperado.

Embora o discurso tenha repercutido muito mal nos EUA, afastando até alguns dos mais empenhados propagandistas e defensores de Israel, aquela jeremiada serviu a um objetivo maior: desviar a atenção mundial das políticas de Israel contra um grupo que Netanyahu excluiu (também) do discurso na ONU: os palestinos.

Yitzhak Shamir
Em novembro de 1989, quando ainda era ministro na coalizão liderada pelo Partido Likud no governo do primeiro-ministro Yitzhak Shamir, um Netanyahu mais jovem disse ao público que o ouvia na Universidade Bar Ilan, que:

Israel deveria ter aproveitado o ultraje da opinião pública contra a repressão às manifestações [da Praça Tiananmen] na China, com todo o mundo atento ao que acontecia lá, para promover expulsões em massa de árabes, dos territórios. Mas, para minha lástima, o governo não aceitou essa política que propus, e que continuo a repetir que deve ser implementada.

Hoje, principal autoridade política israelense,Netanyahu modernizou a estratégia da cortina de fumaça.

Enquanto o primeiro-ministro deblaterava contra o Irã em New York City e num encontro com o presidente Obama no Salão Oval, seu governo preparava-se para implementar o “Plano Prawer” – concebido para expulsar 40 mil beduínos nativos e que são  (palestinos -comentário do Blog) considerados cidadãos israelenses, de suas comunidades ancestrais no deserto de Negev, para “concentrá-los” em aglomerados comandados pelo estado, semelhantes a reservas indígenas.

Como Israel ROUBA terras e bens dos palestinos desde 1947
Concebido pelo principal estrategista político de Netanyahu, Ehud Prawer, e aprovado pela maioria dos membros dos principais partidos políticos no Knesset, o Plano Prawer é só uma das ferramentas do novo programa do governo de Israel para dominar todos os espaços e a vida das pessoas entre o rio (Jordão) e o mar (Mediterrâneo).

Expulsões no deserto

Dia 9/9/2013, visitei Umm al-Hiran, uma das vilas que o estado de Israel planeja varrer do mapa. Localizada na parte norte do Deserto de Negev, dentro dos limites da Linha Verde (a linha demarcada no armistício de 1949 considerada como ponto de partida para qualquer negociação entre israelenses e palestinos), dentro da parte que Israel espera que seja legitimada numa solução de Dois Estado negociada pelos EUA, os moradores de Umm al-Hiran mobilizam-se para resistir à remoção forçada.
Umm al-Hiran, aldeia prestes a ser roubada pelos judeus de Israel
Hajj al-Ahmed
Na sala de uma casa poeirenta, mas impecavelmente organizada, construída com blocos de concreto nos arredores da vila, Hajj al-Ahmed, um xeique já idoso, falou a um grupo de colegas jornalistas do website Mondoweiss e a mim, sobre a experiência dos 80 mil beduínos que vivem nessas vilas classificadas como “não reconhecíveis”. Resultado de repetidas ações que lhes tiraram terras e casas, e vítimas de inúmeras ações de deslocamento forçado, muitas dessas comunidades são cercadas por áreas de despejo de dejetos petroquímicos e foram transformadas em clusters de alta incidência de câncer, enquanto prosseguem as campanhas, por aviões israelenses que despejam produtos químicos, para destruir plantações e matar os rebanhos; essas campanhas já dizimaram os meios locais de subsistência.

Shai Hermesh
Embora residentes (palestinos) como al-Ahmed tenham cidadania israelense, não podem beneficiar-se dos mesmos serviços públicos oferecidos a comunidades de judeus que há nos arredores. As estradas para as vilas “não reconhecíveis” como Umm al-Hiran são margeadas por fiação elétrica, mas os beduínos são proibidos de se conectarem à rede pública. As suas casas e mesquitas são consideradas construções “ilegais” e alvo rotineiro de operações de demolição pelas forças israelenses. Agora, a simples presença deles nas terras que lhes pertencem milenarmente, já está sendo ameaçada.

Conforme o Plano Prawer, o pessoal de Umm al-Hiran estará entre os 40 mil beduínos que serão transferidos à força para cidades semelhantes às que se veem em reservas dos povos nativos norte-americanos, construídas pelo governo de Israel. Como grupo de mais alto nível de crescimento demográfico entre os cidadãos palestinos de Israel, os beduínos foram marcados como ameaça existencial à maioria de judeus em Israel. “Não é do interesse de Israel que haja mais palestinos no Negev” – disse Shai Hermesh, ex-membro do Knesset e diretor do projeto do governo para construir uma “maioria sionista” no sul do deserto.

Ron Lauder
Segundo o website do Or Movementorganização ligada ao governo que supervisiona o assentamento de judeus no Negev, os residentes das vilas não reconhecidas serão movidos para cidades construídas para “concentrar a população beduína”. E pequenas comunidades exclusivas para judeus serão construídas nos locais de onde estão sendo expulsas as comunidades beduínas. A comunidades de judeus receberão vários benefícios do governo de Israel e farto financiamento provido por doadores pró-Israel, como, dentre outros, o bilionário da indústria de cosméticos, Ron Lauder. “Os EUA tiveram seu Destino Manifesto no oeste” – disse Lauder. – “Para Israel, aquela terra é o Negev”.

Quando encontrei al-Ahmed, ele falou de um grupo de 150 estranhos que apareceram de repente na periferia de sua vila no dia anterior. Do alto de uma colina, disse ele, examinaram a região e debateram que parcela caberia a cada um, depois de o Plano Prawer estar completado. Al-Ahmed chamou-os de “judeus no bosque”.

Distante vários metros na direção leste de Umm al-Hiran, está a Floresta Yattir, um vasto bosque no coração do deserto, plantado pelo Fundo Nacional Judeu [orig. Jewish National Fund (JNF)], organização paragovernamental, em 1964. O diretor do JNF naquela época, Yosef Weitz, chefiara o Comitê de Transferência, do governo de Israel, que orquestrou os estágios finais da remoção dos palestinos em 1948. Para Weitz, plantar florestas servia a um duplo objetivo estratégico: as florestas, como Yattir, plantadas próxima à Linha Verde, criariam uma barreira demográfica entre judeus e árabes; e outras florestas, plantadas em terras de antigas vilas palestinas, como Yalu, Beit Nuba e Imwas, impediriam a volta dos habitantes expulsos. Como escreveu em 1949, depois que a maioria de judeus estivesse estabelecida em Israel, mediante a expulsão em massa, “as terras abandonadas jamais voltariam aos antigos proprietários (árabes palestinos)”.

Floresta de Yattir 
Depois que a noite caiu no deserto, saí a rodar, com meus colegas sob os pinheiros de Yattir. Num carro pequeno, rodamos por estradas sem iluminação, até que chegamos a um portão protegido por arame farpado. Era a vila-acampamento modelo de Hiran – dos “judeus no bosque”, como dissera al-Ahmed. Gritamos para que nos deixassem entrar, até que o portão foi aberto. Estacionamos no meio de um “acampamento” de casas-trailers. Como um shtetl no Assentamento, o território, na Rússia Imperial, reservado para residência dos judeus, tudo ali cheirava a sítio e desconfiança.

Um nacionalista religioso barbudo saiu de uma sinagoga com paredes de alumínio e reuniu-se conosco em bancos em torno de uma mesa para piqueniques. Chamava-se Af-Shalom e tinha cerca de 30 anos. Não estava, disse ele, autorizado a falar conosco, antes da chegada de um representante do Or Movement. Mas depois de meio cigarro e poucos minutos de desconforto, o homem pôs-se a falar. Mandara os filhos, disse, para uma escola do outro lado da Linha Verde, na colônia de Susiya, a apenas oito minutos de distância por uma das estradas exclusivas para judeus. Que os beduínos eram “ilegais”, ocupantes da terra que Deus dera aos judeus e continuariam a tomar terra dos judeus, a menos que fossem removidos à força. Pouco depois, chegou Moshe, representante do Or Movement que se recusou a informar seu nome completo. Nos acompanhou na visita, sem dizer palavra.

“O maior centro de detenção do planeta”


A apenas poucos quilômetros de Umm al-Hiran, no sul do deserto Negev e dentro da Linha Verde, o estado de Israel iniciou outro projeto ambicioso para “concentrar” outro tipo de indesejáveis. É a prisão de Saharonim, vasto complexo de torres de vigilância, muros de concreto, arame farpado e um oceano de câmeras de vigilância que hoje constituem o que o Independent britânicodescreveu como “o maior centro de detenção do planeta”.

Construído originalmente para servir como prisão para palestinos durante a 1ª Intifada, a prisão de Saharonim foi ampliada para prender 8 mil africanos que fugiam de genocídios e perseguições. Atualmente, vivem ali pelo menos 1.800 refugiados africanos, inclusive mulheres e crianças, cercados num local que ogrupo israelense de arquitetos Bikrom descreveu como “um gigantesco campo de concentração, onde as condições de sobrevivência são duríssimas” 

Como as vilas “não reconhecidas” dos beduínos do Negev, os 60 mil migrantes africanos e buscadores de asilo político que vivem em Israel foram identificados como ameaça demográfica que tem de ser expurgada do corpo do estado judeu. Numa reunião com ministros de seu gabinete em maio de 2012, Netanyahu alertou que o número deles poderia crescer dezenas de vezes, e “causar a negação do Estado de Israel como estado judeu e democrático”. Por isso, seria imperativo “remover fisicamente os infiltradores” – disse o primeiro-ministro de Israel. “Temos de quebrá-los e implantar castigos ainda mais duros”.

Prisioneiros de Saharonim - refugiados negros, inclusive crianças
Em rápida sequência, o Parlamento de Israel emendou a Lei de Prevenção de Infiltrações, aprovada em 1954 para impedir que refugiados palestinos jamais voltassem a se reunir às famílias e para que fossem forçados a deixar em Israel todas as suas propriedades e bens. Sob a nova lei, africanos não judeus poderiam ser presos e mantidos em prisão sem julgamento por três anos (a Suprema Corte israelense invalidou essa emenda à lei, mas o governo não fez qualquer movimento para “desfazer” o que estava feito, e talvez jamais faça). A lei também criava meios para financiar a construção da prisão de Saharonim e de um muro gigante para fechar toda a fronteira entre Israel e Egito. Arnon Sofer, há muito tempo conselheiro de Netanyahu, também lembrou a urgência de construírem-se muros para o mar” [orig. sea wallspara impedir a entrada de “refugiados das mudanças climáticas”.

Arnon Sofer
“Não estamos habituados a essa região” – Sofer explicou.

Nessa simples frase, destilou toda a lógica do sistema de etnocracia de Israel. Para manter o Estado Judeu, é preciso construir, por engenharia demográfica, uma maioria de judeus não nativos, para depois dispersá-los por toda a Palestina histórica usando métodos de implantação colonial. Planejadores do Estado Judeu, como Sofer, referem-se a esse processo como “a judaização”.

Porque os palestinos nativos e os migrantes estrangeiros não são judeus, o Estado de Israel já os definiu, em termos de lei, como “infiltradores”, e já os condenou à remoção pela força e à relocação permanente em vários tipos de zonas de exclusão – de campos de refugiados em todo o mundo árabe, a bantustões murados na Cisjordânia ou à Faixa de Gaza sitiada, ou, como agora, a campos de concentração de beduínos e a prisões no meio do deserto, como a prisão de Saharonim.

Enquanto o estado de Israel dedica-se a construir a própria maioria demográfica, os excluídos não judeus têm de ser “concentrados”, para abrir espaços para colônias exclusivas para judeus e para o desenvolvimento econômico.

Ze’ev Jabotinsky
Não é sistema particularmente humano, é claro, mas é sistema perfeitamente enquadrado na opinião sionista, da direita Kahanista à esquerda de J Street. De fato, se há algum desacordo substancial entre esses campos só superficialmente divergentes, é o estilo da retórica que usam para defender a etnocracia de Israel. Como o ideólogo sionista revisionista Ze’ev Jabotinsky escreveu e seu famoso ensaio da “Cortina de Ferro”, de 1923, delineando a lógica da que viria a ser a estratégia de contenção de Israel, “não há qualquer diferença significativa entre nossos militaristas e nossos vegetarianos”.

Durante a era de Oslo, o tempo da esperança que prevalecera na Israel de meados dos anos 1990s, foi o Partido Trabalhista “pomba” de Yitzhak Rabin e Ehud Barak quem começou a cercar com barricadas a Faixa de Gaza, além das cercas eletrificadas, ao mesmo tempo em que começavam a arquitetar os planos para erguer um muro que separasse a Cisjordânia, de “Israel propriamente dita”. (O plano então preparado, seria implementado durante o governo de Ariel Sharon como primeiro-ministro).

“Nós aqui, eles bem longe” – foi o slogan da campanha eleitoral de Barak, candidato à reeleição em 1999, e do campo Paz Já, que, naquele momento, apoiava uma solução de dois estados. Durante a implantação das políticas separacionistas do Partido Trabalhistas, os palestinos de Gaza e da Cisjordânia foram gradualmente desaparecendo do próspero centro costeiro de Israel, consolidando cidades como Telavive como “mecas” do cosmopolitismo europeu – “uma Villa na selva”, como disse Barak.

Com a transição política de pós-Oslo, partidos da direita ascendente assumiram como sua missão concluir o serviço que os Trabalhistas haviam começado. Em 2009, quando Israel elegeu o governo mais linha-dura e reacionário de toda sua história, o país continuava cheio de “infiltradores”, os mais visíveis dos quais são aqueles migrantes africanos, sem papéis que lhes permitam trabalhar, e cada dia mais forçados a dormir pelas praças em Telavive.

Segundo matéria publicada no jornal Haaretz,sobre pesquisa recentíssima feita pelo Israel Democracy Institute, sobre atitudes dos israelenses;
Eli Yishai

(...) os árabes já não aparecem no topo da lista de vizinhos que os israelenses consideram indesejáveis, substituídos hoje por trabalhadores estrangeiros. Quase 57% de respondentes judeus disseram que se sentiriam incomodados se tivessem, como vizinhos, trabalhadores estrangeiros.

Sem se deixarem conter pelas declarações de tolerância da centro-esquerda, a direita do governo lançou um festival sem precedentes de incitamento ao racismo.

O Ministro do Interior, Eli Yishai do Partido Shas (substituído depois da eleição de 2013), por exemplo, descreveu os migrados africanos que buscam asilo comoinfectados por inúmeras doençase lamentou que “não saibam que o país nos pertence, a nós, os brancos”. E prometeu: “Até eu posso deportá-los. Meto-os na cadeia e faço da vida deles, um inferno”.

Miri Regev
Num comício em maio de 2012, em Telavive, contra os africanos, no palanque, diante de mais de mil manifestantes, a deputada e ex-porta-voz do exército de Israel, Miri Regev disse: “Os sudaneses são um câncer no nosso corpo!”. E incitou centenas de manifestantes que, em blocos, vandalizaram estabelecimentos comerciais de propriedade de negros e atacaram com paus e pedras os negros que encontrassem. Os judeus israelenses racistas cantavam “Nosso povo quer queimar os africanos!”.

Como em outros momentos terríveis da história humana, os clamores eliminacionistas florescem em centros urbanos, contra uma classe de estigmatizados, e abre espaço para discursos a favor da purificação étnica ou racial. Na noite seguinte, depois dos vidros quebrados, as celas de Saharonim receberam ainda mais prisioneiros. (...)




[*] Max Blumenthal, nascido em Boston em 18/12/1977, é jornalista, blogueiro e autor do best-seller Republican Gomorrah: Inside the Movement That Shattered the Party. Produziu vários documentários que podem ser assistidos no YouTube e muitos websites. Foi colunista sênior doThe Daily Beast. Trabalha atualmente na organização progressista Media Matters for America. Mantém o website MaxBlumenthal.com.

O Estado e a violência

Por Mauro Iasi.
“Nosso objetivo final é a supressão do Estado,
isto é, de toda a violência, organizada e sistemática, 
de toda coação sobre os homens em geral”

Lenin

A maior de todas as violências do Estado é o próprio Estado. Ele é, antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra. Nas palavras de Engels é a confissão de que a sociedade se meteu em um antagonismo inconciliável do qual não pode se livrar, daí uma força que se coloque aparentemente acima da sociedade para manter tal conflito nos limites da ordem.

A ideologia com a qual o Estado oculta seu próprio fundamento inverte este pressuposto e o apresenta como o espaço que torna possível a conciliação dos interesses que na sociedade civil burguesa são inconciliáveis. A contradição existe no corpo da sociedade dividida por interesses particulares e individuais, enquanto o Estado, ao gosto de Hegel, seria o momento ético-politico, a genericidade como síntese da multiplicidade dos interesses. A este momento político universal se contrapõe o dissenso, a rebeldia, o desvio e este deve ser contido nos limites da ordem, do que resulta que todo Estado é o exercício sistemático da violência tornada legítima.

Desde Maquiavel que a teoria política moderna sabe que a violência não pode ser o instrumento exclusivo do Estado, o uso adequado da violência (para Maquiavel aquele que atinge o objetivo de conquistar e manter o Estado) deve ser combinado com as formas de apresentá-lo como legítimo, o que nos leva à síntese entre os momentos de coerção e consenso, a famosa metáfora maquiaveliana do leão e da raposa. Poderíamos dizer que a violência só é eficaz quando envolvida por formas de legitimação da mesma forma que os instrumentos de consenso pressupõem e exigem formas organizadas de violência. O leão e a raposa são igualmente predadores, suas táticas é que diferem.
A separação entre violência e consentimento, entre coerção e consenso, serve às vestes ideológicas que procuram apresentar o Estado como uma função necessária e incontornável da sociabilidade humana. Nesta leitura ideológica, uma vez constituída a sociabilidade sobre as formas consensuais expressas no ordenamento jurídico, nas normas morais e imperativos éticos aceitos e compartilhados, a violência fica como uma espécie de reserva de segurança para conter os casos desviantes. Assim, a violência é apresentada como exceção e o consentimento como cotidianidade. O Estado é a garantia que a violência será coibida.

Nada mais enganador. A violência é resultante da contradição inconciliável que fundamenta nossa sociabilidade e portanto ela é cotidiana, onipresente e inevitável. Ainda que disfarçada de formas não explícitas como nos consensuais procedimentos legais e fundamentos jurídicos, como valores morais ou formas aceitas de ser e comportar-se. Até Durkheim sabia disso quando afirmava que as formas de ser, agir e pensar são impostas coercitivamente e se não percebemos esta coerção nas formas cristalizadas como hábitos não é porque ela não exista, mas porque já foi realizada com eficiência.

Mesmo a violência explícita é cotidiana. Ela é explícita e invisível, se mostra para ocultar-se. No preconceito que segrega, na miséria que aparta, na polícia que prende, tortura e mata, na moradia que se afasta, nas portas que se fecham, nos olhares que se desviam. Na etiqueta de preço nas coisas feitas em mercadorias que proíbem o acesso ao valor de uso, no mercado de carne humana barata na orgia de valorização do valor, sangue que faz o corpo do capital manter-se vivo.

Mas ela também é explícita e visível. No tapa da cara do trabalhador na favela dado por um homem de farda e armado. Na fila de cara para o muro sendo apalpados, nos flagrantes forjados ou não, no saco de plástico na cabeça, na porrada, no chute na cara, no choque nos testículos. Na cabeça para baixo, olhos para o chão, mãos na cabeça, coração acelerado. Na humilhação de ser jogado no camburão, na delegacia, como carga de corpos violentados nos presídios, longe de direitos e mesmo de procedimentos elementares, muito longe de recursos e embargos infringentes.

Um doente aidético, chora em sua cama na enfermaria do antigo presídio do Carandiru e atrapalha o sono do agente penitenciário. É espancado em sua cama com um cano de ferro. O cano da arma na boca da criança que dorme nos degraus da igreja na Candelária. O viciado arrastado à força para o “tratamento”. O louco impregnado de medicamentos. A família que vê o trator derrubar sua casa na remoção para viabilizar a Copa do Mundo de futebol. A mãe que reconhece o corpo de seu filho assassinado no mato e ouve do delegado para deixar quieto e não fazer ocorrência. Ela parou de falar, obedeceu.

Mas haveria uma ligação entre esta violência dispersa e multifacetada e o Estado como garantia da ordem burguesa? 

O Estado parece deixar-se distante disso tudo. Certo que são seus agentes que operam esta violência cotidiana, mas o Estado trata, como cabe a uma universalidade abstrata, de abstrações. Ele traça os planos, as metas, as políticas. Ele elabora o PRONASI, um programa nacional de segurança e cidadania, no qual os objetivos são moralmente aceitos, os meios os melhores e as intenções louváveis, mas os corpos começam a aparecer nas UPPs. O prefeito chora em Copacabana quando o Rio é escolhido para sediar o grande evento esportivo e o trator começa a derrubar casas. A presidente aprova a usina hidroelétrica e as árvores e índios começam a perder seus espíritos e raízes.

Há três anos, depois do primeiro turno das eleições nas quais o PT apoiou a candidatura de Sérgio Cabral ao governo do Rio de Janeiro, Lula discursando na inauguração de uma plataforma de petróleo da Petrobras em Angra disse:
O Rio de Janeiro não aparece mais nas primeiras páginas dos jornais pela bandidagem. O governo fez da favela do Rio um lugar de paz. Antes, o povo tinha medo da polícia, que só subia para bater. Agora a polícia bate em quem tem que bater, protege o cidadão, leva cultura, educação e decência”.

Três anos depois um pedreiro sai de um boteco na Rocinha “pacificada”. É abordado pela polícia militar e levado para averiguações na sede da UPP. Sua cabeça é coberta por um saco plástico, é espancado e toma choques. Epilético, não resiste e morre. Os policiais desaparecem com o corpo. Dez policiais são indicados pelo crime, o governador Cabral e o secretário de segurança Beltrame não estão entre eles. O Estado no seu reino de metafísico está protegido pela muralha da universalidade abstrata, no cotidiano da sociedade civil burguesa onde se estraçalham as particularidades pode-se sempre acusar o erro humano, o desvio de conduta, a corrupção. O Estado então promove seu ritual de encobrimento: vai ser aberta uma sindicância e serão feitas averiguações. Evidente que os dez acusados ou suspeitos não serão sequestrados, suas cabeças enviadas em sacos plásticos e seus corpos desaparecidos.

Na abstração dos direitos somos todos somos iguais. Na particularidade viva da sociedade burguesa somos pobres, pretos, favelados, facilmente identificados para receber práticas discriminatórias em nome da ordem a ser mantida. Ordem e tranquilidade. Na ordem garantida os negócios e acordos são garantidos sem sobressaltos, a acumulação de capitais encontra os meios de se reproduzir com taxas adequadas, o Estado é saneado financeiramente destruindo as políticas públicas e garantindo a transferência do fundo público para a prioridade privatista. A ordem garante que a exploração que fundamenta nossa sociabilidade se dê com tranquilidade.

No entanto as contradições desta ordem, por vezes, explodem em rebeldia e enfrentamentos. Não apenas como nos protestos que presenciamos desde junho, mas também por pequenas explosões e caóticas resistências que vão desde o enlouquecimento e a miserabilidade que se torna incomodamente visível, até o crime.

Professores, universitários do ensino público federal ou da rede estadual e municipal de ensino, que resolvem não aceitar a imposição de um plano de carreira; jovens que se recusam a pagar o aumento das passagens, mulheres exibindo seus seios e jovens se beijando, escudos, vinagres e máscaras; são apenas a expressão mais contundente e parcial da contradição (esperamos ainda que despertem metalúrgicos, petroleiros e outros). Além destas manifestações já estavam lá no corpo doente da cidade, os bolsões de miséria, as favelas, as famílias destruídas, os jovens sem futuro acendendo seus isqueiros para iluminar um segundo de alegria.

O Estado é a trincheira de proteção estratégica da ordem da propriedade privada e da acumulação privada da riqueza socialmente produzida. No centro desta zona estratégica está a classe dominante, a grande burguesia monopolista dona de fábricas, bancos, empresas de transporte, controlando o comércio interno e externo, o agronegócio, as indústrias farmacêuticas e das empresas de saúde, etc. São cerca de 124 pessoas que controlam mais de 12% do PIB do Brasil, os 10% mais ricos que acumulam 72,4% de toda a riqueza produzida. Em seu entorno estão seus funcionários, um exército de burocratas, políticos, técnicos e serviçais de toda ordem que erguem em defesa deste círculo estratégico de uma minoria plutocrata as esferas do poder público e seus aparatos privados de hegemonia.

Na forma de um terceiro círculo de defesa, mas que se articula a este segundo, está um exército de funcionários que executam o trabalho (limpo ou sujo) de manutenção da ordem. Como extrato baixo da burocracia Estatal não compartilha dos altos salários e benesses do segundo círculo, mas isso não os faz diretamente membros da classe trabalhadora por receberem baixos salários e terem que trabalhar e viver nas condições de nossa classe. O ato de um policial militar que estapeia o rosto de um trabalhador na favela é o ato pelo qual ele abdica de sua condição de classe, se alia aos nossos algozes e se torna nosso inimigo.

Contraditoriamente, o ato pelo qual uma corporação, como os bombeiros, se levanta em greve por condições de trabalho e salários, é o ato pelo qual rompe com seus chefes e busca aliar-se a sua classe para constituí-la enquanto classe. “O bombeiro é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”, gritam os trabalhadores que lhes abrem os braços com a infinita solidariedade que constitui a liga sólida que nos faz classe.

Um taxista pega um grupo de professores e pergunta se eles estavam na manifestação contra o Prefeito Eduardo Paes e seus planos de carreira. Diante da resposta positiva o taxista diz: “então não vou cobrar esta corrida, fica como contribuição para a luta de vocês”.

O Estado precisa reprimir e criminalizar toda e qualquer dissidência pelo simples motivo de que por qualquer pequena rachadura da ordem pode brotar a imensa torrente que nos unirá contra a ordem que o Estado garante. Ainda que muitos de nós ainda não saibamos disso, o Estado e a classe que ele representa sabem.

A ridícula minoria de exploradores e os círculos de defesa que se formam em torno deles, está cercado por nós, a maioria. Primeiro pelos trabalhadores recrutados pelo capital para valorizar o valor, depois um enorme contingente de trabalhadores que garantem as condições indiretas de produção e reprodução da força de trabalho e logo em seguida pela massa de uma superpopulação relativa cujo papel e pressionar os salários para baixo para manter a saúde da acumulação de capitais. Por isso eles estão armados até os dentes, por isso tem tanto medo de nós.

Fica evidente o motivo pelo qual a classe dominante precisa do Estado, a grande pergunta é: para que nós precisamos do Estado?

A justificativa ideológica quer nos fazer crer que a complexidade da sociedade contemporânea exige um grau de planejamento, técnica, procedimentos sem os quais seria impossível a vida em sociedade e mergulharíamos no caos da guerra de todos contra todos. Ora, como diria Einstein: defina caos! Estamos mergulhados na guerra da burguesia monopolista e imperialista contra todos! Brecht já dizia em seus poemas sobre a dificuldade de governar: “Todos os dias os ministros dizem ao povo como é difícil governar. Sem os ministros o trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas.”

Quem somos nós e porque precisamos deles? Somos trabalhadores, sabemos plantar alimentos, construir casas, fazer roupas e meios de transporte, calçados e todos os tipos de ferramentas, ensinamos e cuidamos de nossa saúde, e como não somos de ferro fazemos músicas e poemas, trazemos a vida para telas e palcos, damos forma ao mármore e ao bronze, nos olhamos e nos apaixonamos e temos filhos tão humanos, tão humanos que carregam a vã esperança de que podemos ser melhores.

Mas isso é utópico, a natureza humana… a natureza humana! Nos gritam os ideólogos. Temos contradições, é verdade. Nós brigamos, divergimos, conhecemos a maldade e os canalhas de toda a espécie. A ordem da propriedade e da mercadoria e o poder que inevitavelmente a ela se acopla transformam nossas contradições em contradições inconciliáveis e criam formas de poder que consolidam uma ordem de exploração. Não querermos abolir as contradições queremos desvesti-las da forma histórica da propriedade e vivê-las humanamente.

Quando tivermos superado esta ordem e um trabalhador hipoteticamente encontrar em um banco de praça o Cabral e o Paes, despidos de toda a autoridade de seus cargos, nus de todo poder com o qual a ordem do capital os ungiu, vai colocar a mão no ombro deles e dizer: “vocês são uns bostas, canalhas mesmo, minha vontade é chamar aquele meu amigo black bloc e te encher de porrada… mas eles não batem em gente, só em coisas. O lanche é as 16 horas e a festa as 20 horas lá na praia, passa lá para a gente vaiar vocês… pelos maus tempos”.

É lógico que eles e seus patrões verdadeiros não vão permitir que isso aconteça, por isso temos que nos constituir como um poder tão grande e definitivo que ninguém possa questionar. Destruir o Estado da Burguesia e construir o Estado dos Trabalhadores que prepare as condições para superar as contradições que exigem um poder separado da sociedade até que consigamos eliminar as classes e constituir uma sociedade sem Estado, autogovernada.

Não precisamos deles (podemos começar fechando o Senado que não vai fazer falta). Não é possível que não possamos fazer melhor que esta porra que está aí. Vai do nosso jeito… nosso porto, por exemplo, pode não ser um “porto maravilha”, porque maravilha para eles é esta cidade horrorosa, desigual e injusta cheia de prédios enormes de cimento e vidro e vazios por dentro à noite, cemitérios com seus túmulos sem ninguém que os habite.

Nosso porto teria casas, algumas modestas com o reboco por consertar e a pintura gasta, com janelas abertas e dentro delas pessoas que as fazem humanas. De lá sairiam crianças alegres, saudáveis e alimentadas, indo para as escolas, parques e museus, e nós sairíamos para o trabalho para fazer todas as coisas que sabemos e a noite voltaríamos para nossas casas e cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e receberia de acordo com sua necessidade.

Nós chamamos isso de comunismo, porque somos comunistas. Chamem do que quiser: socialismo, sociedade libertária, anarquismo, plena democracia… não importa, não somos fetichistas das palavras. Queremos apenas, e conquistamos este direito, participar da luta por ela e em sua construção. Afinal, é isso que nós comunistas fazemos… a mais de 160 anos.

Até quando o mundo será governado pelos tiranos?Até quando nos oprimirão com suas mãos cobertas de sangue?Até quando se lançarão povos contra povos numa terrível matança?Até quando haveremos de suportá-los?
Bertolt Brecht
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Mauro Luis Iasi é membro do Comitê Central do PCB