quinta-feira, 9 de outubro de 2014

AKP , Estado Islâmico, EUA... Ficaram todos malucos?


Em 23 de setembro por Kemal Okuyan (PC Turco), para o soL Portal de Notícias
Vem-nos sendo dito que o processo de confrontação aberta que ocorre no Oriente Médio está fora de controle, que as ações dos principais atores envolvidos perderam qualquer racionalidade e que poderão ocorrer alianças ou confrontos inesperados nos próximos tempos. E em todos os casos é o Estado Islâmico (ISIS: Islamic State) que está à frente no debate. Vem-nos sendo dito que a existência dessa organização sanguinária é o resultado da falta de perspectiva e de planejamento, que é também o resultado de uma estratégia imediatista do imperialismo e de fanatismo religioso. Vem sendo mencionado que o ator que foi posto no palco para desempenhar outro papel (o ISIS) começou a improvisar por conta própria de maneira tão acentuada que o diretor, o roteirista e os designers de palco e vestimentas ficaram pasmos com sua perda de controle.
Quando o assunto em questão são as políticas dos EUA para a região, encontramos muito frequentemente o conceito de “caos organizado”. Obviamente que não devemos entender isso como o planejamento e a criação do caos em cada um dos mínimos detalhes. Numa região onde a energia destrutiva pode continuar recriando a si mesma, providenciando insumos que acionam a liberação dessa energia, os EUA estão tentando fazer com que as coisas cheguem num estágio diferenciado de controle, num amplo domínio político no qual diferentes elementos começam a mover-se em diferentes direções e onde estes confrontam uns aos outros abertamente. Das relações políticas francas e declaradas às relações dissimuladas, o estabelecimento dessas entre todos os elementos vem se expandindo, abrindo continuamente novos canais de intervenção...
Em resumo, no atual estágio não há nenhuma razão para declarar que certos atores estão fora de controle ou que não são administráveis. Afinal, será que esses atores já foram administrados segundo seu sentido implícito? Estamos constantemente falando sobre grupos islâmicos e tentando imaginar quando que a Al-Qaeda, Talibã, Al-Nusrah e agora o Estado Islâmico foram aliados dos EUA e quando passaram a ser inimigos. Vamos olhar por outra perspectiva. Saddam Hussein. que foi deposto pela ocupação militar estadunidense sobre o Iraque, não havia ele mesmo sido conduzido pelos EUA a entrar em guerra contra o Irã? Mais tarde, ele não recebeu o aval de Washington para ocupar o Kuwait? E ainda assim não acabou tendo seu nome adicionado a lista de inimigos dos EUA logo depois?
Estivera Saddam fora de controle ou estava o imperialismo estadunidense seguindo uma “estratégia” dinâmica que amadureceu em menos tempo que qualquer um poderia ter conseguido para a situação política dessa região? Essa estratégia que constantemente se choca contra um muro pode ser vista como um carrinho de bate-bate que muda de direção a cada vez que acerta um obstáculo. Dessa maneira, os EUA conseguem controlar a situação até que alguém lhe tome o carrinho de assalto ou lance um carrinho mais potente para brincar na região; região esta que mais parece um campo minado...
O Estado islâmico está fora de controle, a Turquia vem sendo governada por maníacos e os EUA estão em choque... Será realmente possível explicar tudo isso que está acontecendo nesses termos?
Se prestarmos atenção torna-se claro que o ISIS está se comportando de maneira previsível e lógica. Querem mesmo que acreditemos que seus líderes são psicopatas? Ok, talvez sejam em parte, mas não são tão mais do que os que estão em Washington ou Ankara! Dessa forma, o que determina o comportamento do Estado Islâmico?
  1. Fanatismo religioso... Mais presente em suas bases que em suas lideranças.
  2. Dinheiro... Em grandes quantidades.
  3. O desejo de governar e dominar... Numa versão que cresce a cada dia que passa.
  4. Influência externa... Quanto a isso, absolutamente nenhuma dúvida!
A pergunta que deveríamos estar nos fazendo é se os EUA foram pegos despreparados pelas últimas ações do ISIS. Deixe-me apresentar a resposta... A reação do governo dos EUA à tomada da cidade de Mosul pelo Estado Islâmico é parecida com a reação de Davutoglu [1] ao ataque a Reyhanli [2]. O governo dos EUA está extremamente satisfeito com a agenda do Estado Islâmico. Com o passar do tempo podem ocorrer consequências indesejadas, mas isso é algo que eles irão relevar sobre a atuação política do ISIS. Essa não foi sempre a questão?
Outra pergunta emerge exatamente sobre esse tema. O que a Turquia está planejando fazer? Estará o seu governo desempenhando o novo papel que lhe foi atribuído como parte da redistribuição de funções entre os demais atores promovida pelos EUA ou estará a equipe de Erdogan-Davutoglu seguindo um caminho de insanidade que os levará a um lado contrastante com os EUA? Nenhuma das duas. Para ser mais preciso a pergunta que devemos fazer não é essa.
A Turquia não atua na região isoladamente a partir da incorporação mecânica de uma estratégia dos EUA. Como uma condição importante em seus processos decisórios, ela também deixa algum espaço para suas próprias prioridades políticas e ideológicas. Essa decisão nem sempre precisa estar alinhada com as estratégias dinâmicas dos EUA. Isso é impossível em todo o caso.
Vamos nos aprofundar na questão do Estado Islâmico um pouco mais. Entre os países que se juntaram à coalizão liderada pelos EUA contra o Estado Islâmico não estão ainda alguns que seguem financiando a mesma organização? Sim, há. No caso, a Arábia Saudita, o Qatar e a Jordânia iriam interromper os repasses de dinheiro e armas para o ISIS e não demoraria ao todo mais de uma semana para que toda a negociata estivesse interrompida. Entretanto, além de algumas questões simbólicas, nada de mais substancial foi feito nesse quesito. Em outras palavras, a coalizão reacionária continua financiando a organização a qual eles haviam declarado como “inimiga”. Quem acreditará em vocês depois disso? Mas eles querem que acreditemos que o ISIS está fora de controle. Vamos definir isso então: foi desejável que o ISIS estivesse fora de controle!
O governo do AKP [3] anuncia publicamente, justamente sobre esse assunto, seu compromisso com o Estado Islâmico. Ele finge estar relutante a juntar-se à coalizão, ele não pode declarar o ISIS como “terrorista” e de tempos em tempos ele acaba confrontando o governo dos EUA. A existência de laços militares, econômicos, políticos e ideológicos entre a Turquia e o Estado Islâmico é de conhecimento público. Não é relevante debater se esses laços existem, mas sim em qual escala estão e quão profundo eles são. Isso é o que importa para o debate.
Como que Erdogan [4] conseguiu tanta liberdade de movimentação? Por que, se os EUA estão forjando um “sistema” alheio a este caos eles precisarão de um supervisor que possa falar a mesma língua dos estados tribais islâmicos. O AKP também sabe que esse ator diferenciado não pode ser ninguém mais que eles mesmos. Não há nenhuma outra força mais apropriada para cumprir este papel. Um governo secularista na Turquia desejando colaborar com os EUA pode desempenhar também papéis bastante variados, mas ele não pode falar a linguagem ideológica reacionária que só o AKP pode fazer. Para que o AKP permaneça no poder, ele deve responsabilizar-se pelo Estado Islâmico e outros grupos. Os EUA compreendem isto. E para a perpetuação das justificativas para a intervenção estadunidense na região o ISIS precisa estar apoiado por alguém, precisa estar fortalecido, ao menos por algum tempo. Os EUA compreendem e fecham os olhos para a situação.
E enquanto tudo isso acontece, o AKP está cavando a própria cova. Com o anseio de ser a força política hegemônica de uma União do Oriente Médio (ou seja, uma união de estados tribais), como o novo Império Otomano, ele está se metendo em aventuras aquém de suas capacidades. Sem levar em conta a possibilidade de que um dia seus mestres da “estratégia dinâmica” poderão virar-lhe as costas e dizer “você é meu inimigo agora”...
[1] Ahmet Davutoglu é o atual primeiro ministro da Turquia. Protagonizou-se quando ministro das Relações Exteriores pela política de expansão da influência turca nos territórios do antigo Império Otomano, incluindo relações diplomáticas com Israel. É o líder do partido conservador AKP.
[2] Em Reyhanli, um vilarejo turco na fronteira com a Síria, mais de cinquenta pessoas foram mortas durante um ataque à bomba no ano passado. Quando Davutogslu foi questionado sobre os assassinatos, ele respondeu com um pequeno sorriso no rosto.
[3] Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) é um partido conservador que está no poder na Turquia desde 2011.
[4] Recep Tayyip Erdogan é o atual presidente da Turquia em exercício desde 2014. Ele pertence ao partido conservador AKP.
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

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